(Post reformulado a partir de outro já publicado em 26 de Outubro de 2009)
Henrique Maria Ulrich Anjos, 23.º CFORN
(1952-1993)
(1952-1993)
Dele disse a jornalista Inês Dentinho: «Um aristocrata que escolheu ser pescador, um campeão de vela que quis ser bombeiro, um homem do Mar que uniu os grandes e os pequenos da baía de Cascais».
Mas foi mais. Campeão de vela, olímpico nos Jogos de Munique de 1972, nos de Los Angeles de 1984 e nos da Korea do Sul em 1988, foi também Oficial Fuzileiro da Reserva Naval, incorporado no 23.º CFORN, ingressando na Armada em 30 de Agosto de 1973. Prestou serviço em 1975, em Angola, integrado na Companhia de Fuzileiros nº5.
Nos seus tempos de menino frequentou a Escola Técnica dos Salesianos, do Estoril, e o Colégio de João de Deus, no Monte Estoril, neste último de 1963 a 1967, entre o 2.º e o 5.º ano do liceu.
A sua vida é uma história de entrega aos outros, de desapego ao material, de exemplo contagiante pelo entusiasmo que a tudo dedicava, sem sacrifício aparente, apenas pelo gosto de viver para a natureza.
A sua morte prematura antes de completar 40 anos de idade, deixou vazio um lugar único que era só dele.
Quatro anos depois desse dia fatal, o texto que Inês Dentinho escreveu na data, merece ser recordado. Nele se revê a figura de Henrique Anjos na sua dimensão maior. Com a devida vénia, aqui o recordamos em frases elucidativas:
“Era um homem do mar. Calado como a noite. Generoso como as marés. Forte como um porto de abrigo. Fez da sua vida uma história de água salgada. Na vela, nos fuzileiros e na pesca. Tinha com o Mar uma conversa íntima. De respeito e à-vontade. A mesma que o fez perder. No dia em que o respeito não vingou.
Henrique Anjos morreu na baía de Cascais onde corria os seus dias. Entre a Lota e o Clube Naval. Reunia em si os dois mundos da vila antiga. Era aristocrata e pescador. Desportista e profissional. Civilizado porque simples.
Nunca deixou de ser quem era, por passar a ser quem foi.
A “alta” achava-o excêntrico. Demorou a entender aquele viver solitário, de um dos seus entre os homens do mar. Foi também com o tempo, que os pescadores aprenderam a tê-lo como igual. Ou quase. Porque quando a crise apertava e a discussão fazia divisões, lá acorriam ao Mestre Henrique Anjos na certeza de uma solução para o enguiço.
Podiam contar com ele. Tão silencioso como popular, ele ouvia os aflitos, estudava os assuntos e tratava de achar a exacta resposta para a “tempestade”. Assim, lançou os Estatutos para a Associação de Armadores e Pescadores de Cascais, pediu regras justas para a Lota, quis de volta a Casa dos Pescadores, requereu licença de arrasto para Cascais e pensou a futura Marina a contento da pesca e do recreio.
No outro extremo da baía, com igual empenho, animava as escolas de vela. Lançou sementes que hoje dão fruto.
Em nome do Mestre, a Câmara criou o Dia do Pescador de Cascais, comemorado anualmente a 8 de Março. E colocou, no Largo da Lota, a nova placa de Henrique Maria Ulrich Anjos. Um homem que sozinho traçou o caminho. Hoje percorrido por todos.
Nascido em Lisboa a 4 de Junho de 1952, com casa na Linha, era junto dos ganhões alentejanos, durante as férias, que o rapaz se sentia melhor. Saía de madrugada para a monda nas herdades das tias de Estremoz. Almoçava na cozinha do rancho e recebia os seus tostões ao Sábado, como mais um trabalhador rural. Tomava-se a sério e ganhava gosto pela vida daquela gente. De tal maneira, que quando entrou para a primária, não queria aprender a ler – “quero ser ganhão. E os ganhões não sabem ler”.
A sábia professora arranjou-lhe então uma gazeta agrícola que Henrique devorou em letras. Ali se descreviam culturas e calendários rurais. Aplicou os conhecimentos no fim do jardim grande da casa de Santo Amaro. Plantava as suas hortas, colhendo frescos para a casa.
Mas seria o mar que o chamaria com apego. Filho e neto de velejadores consagrados, cedo se habituou a acompanhar o pai no barco, aos fins-de-semana. Lá estava também o velho arrais Augusto, com tempo e encanto para ensinar o seu pequeno marinheiro.
Velejador desde os cinco anos de idade, aos oito entra para a primeira escola de vela, em Algés. Foi campeão nacional júnior, em 1971 na classe Finn. No ano seguinte conquista o 6.º lugar nas Olimpíadas de Munique, na classe Star.
Vivia agora no Estoril e passava os dias na Baía de Cascais. “Tinha a mania da pesca. Nas pedras havia mais peixe e era para lá que ele ia desde os 14 ou 15 anos. Mexia-se dentro de um barco como se estivesse em terra” diz dele o seu amigo e também oficial fuzileiro da Reserva Naval, José Maria Bustorff Silva, do 23º CFORN.
Igual a si próprio oferecera-se, entretanto, como voluntário para os bombeiros, ganhando méritos e louvores por actos de bravura. Recebia as honras sem publicidade.
Tal era o empenho do bombeiro que no dia da admissão à faculdade preferiu responder à sirene em vez de fazer exame. Apagou esse fogo e entrou, no ano seguinte.
Vai trabalhar para a Lisnave, onde um tio, na Administração, lhe pergunta: “Queres aprender ou queres ganhar dinheiro?”. Quis aprender a ser soldador mecânico. E foi. Mas tinha 19 anos e uma vontade certeira de ligar a sua vida ao mar. Em 1973 oferece-se como voluntário para os fuzileiros navais. Vai para Angola.
De volta a Lisboa não se demora na vida militar. Passa a trabalhar em limpezas químicas das tubagens dos navios.
Apesar da violência dos empregos, Henrique Anjos nunca larga a vela. Esgota as energias do fim-de-semana no clube Naval de Cascais. Será campeão nacional, na classe Star, desde 1979 a 1984, repetindo a proeza em 1988.
Casara durante o serviço militar, mas não procura casa. Igual a si próprio, queria viver num barco. Em 1975 consegue comprar uma traineira devoluta. Mas acaba por manter os pé em terra. Vive em Sintra, contrariado pela serra que o separa da baía. Tem quatro filhos, todos eles amigos do vento e do mar.
A partir de 1978 dedica-se à pesca. Recupera o barco. Faz redes na perfeição. Tem engenho. Apura o sentido prático de quem vive da natureza. Aprende depressa. Conhece o mar como qualquer velho pescador profissional. Todos os dias saía para o mar às três da tarde e voltava na manhã seguinte, por volta das dez. Despachava o peixe na lota e passava pelo Clube Naval, por vezes ainda equipado. Na praia batia-se pelo espírito de corpo dos pescadores de Cascais. Corria o país, de Peniche a Olhão, na demanda da melhor estrutura para uma associação dos “seus” homens.
Fazia quilómetros ao fim-de-semana, à procura de estatutos ideais para o caso da sua terra. O turismo e a natureza individualista da gente do mar “proibiam” o espírito de corpo dos pescadores.
Henrique batia-se sozinho pela mudança da corrente. As injustas regras da lota, beneficiando as especulações de intermediários, assim o impunha. Queria as licenças de arrasto de vara e arrasto de portas, fixas em Cascais. Viria a garanti-las depois de morrer.
Entrava nos cursos de formação profissional só para mostrar aos outros pescadores que também deveriam estudar. E punha o seu barco, gratuitamente, à disposição para o ensino dos novos profissionais.
Tudo fazia sem alarde. Indiferente às resistências. Com uma estranha confiança no futuro que não conheceu.
Morreu com 40 anos, tentando salvar os barcos do Clube Naval, num dia de mar picado. Ninguém lhe pedira ajuda. Mas era preciso evitar o estrago pior.
Que não evitou".
A trágica morte no mar, à vista do “seu” Clube Naval, no meio das embarcações da Baía dos “seus” pescadores, depois de anos de luta pela segurança da profissão, foi castigo para quem o devia ter ajudado e com ele deveria ter lutado. Para Henrique Anjos, a glória do seu nome perpetuado, sem as honrarias que sempre rejeitou em vida, mas cuja memória, aqui e ali, vai continuar a ser lembrada.
Morreu o Homem.
Fica a Memória. Salvou-se a obra.
Fontes:
Revista n.º 18 da AORN-Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Ano XV, Outubro 2010;
Revista n.º 18 da AORN-Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Ano XV, Outubro 2010;
mls