29 junho 2017

... ao saudoso Antas de Barros do 22º CFORN


Gabriel Caldas de Antas de Barros
(1951-2002)


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 11 de Novembro de 2009)


... ao saudoso Antas de Barros

O Gabriel era um rapaz “sui generis”!

Penso que exercia a profissão de advogado na cidade de Braga, capital da província setentrional que foi berço da sua existência.

O Gabriel, tal como eu, integrou o 22º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval, na classe de Fuzileiros.

Um dia, no alvor de uma fria manhã de Fevereiro do já longínquo ano de 1974, embarcámos, nove, para juntos cumprirmos comissão de serviço na então Província Portuguesa da Guiné.

Era um rapaz aprumado, aquele quarto oficial do DFE5-Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 5!

Cioso das suas origens minhotas e orgulhoso por envergar a farda da Marinha, recordo, não raras vezes, vê-lo colocar, com inigualável altivez, a boina azul ferrête com o ferro doirado da Marinha, com que, naqueles tempos, eram distinguidos os melhores entre os melhores.




Gabriel Antas de Barros, à esquerda, e José Carrajola Horta, à direita,
dando as boas vindas a um novo “Pira di Marinha”, José Ribeiro Andrade, ao centro


Admirava-lhe o esmero, a fidalguia, o espírito indomável, a generosidade, e a enorme voluntariedade e prontidão para toda e qualquer missão, “por rios e tarrafos”, de que se havia com tranquila eficácia e rigoroso zelo.

Auscultava nele o sonho, grandioso, de servir a sua Pátria, acima de tudo, contra ventos e marés, com honra, valentia e inestimável dignidade...

Era exemplar no brio e na tradição!

Corriam, então, os anos meãos das sua efémera passagem por este destino terreno que, precocemente, interrompeu. A notícia chegou brutal, inexorável, há alguns precisos meses!...

Uma curva da estrada atirou a moto que conduzia para um destino sem retorno. Ele, não tenho dúvida, seguiu o seu caminho que leva a uma nova luz.

E lá, no reino dos Justos, reservado terá o lugar de todos aqueles que têm um coração universal, do tamanho desse Mar sem fim, que cruzámos, e que tanto deram na Terra!

Apesar de tardia, "mea culpa", esta humilde homenagem ao amigo que dava pelo nome de Gabriel Caldas de Antas de Barros, não pode deixar de ser feita! Fomos, afinal, camaradas de armas e companheiros de missão.

Que Deus o receba na Luz da Sua infinita glória!


José Manuel Carrajola Horta
22º CFORN


mls

16 junho 2017

Histórias do DFE 13 (IV) - Angola, 1965-1967


Angola-Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 13

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 1 de Janeiro de 2010)




Vasco Quevedo Pessanha-7.º CEORN


Como dizia no artigo anterior, o meu grupo de combate, entre Agosto e Outubro de 1966, esteve no posto do Tridente, no Rio Zaire, junto de Noqui.




A foz do rio Zaire com um pormenor da zona da vila de Noqui, mais a montante, assinalado.

A vida era pacata e tranquila e no nosso esquema de rotatividade sabíamos de antemão, de forma muito aproximada, o tempo que iríamos passar em cada um dos postos. Essa situação não era proporcionadora das neuras que assaltavam os nossos colegas de Noqui, como contei da última vez.

Contudo, o cumprimento da nossa missão nos diferentes postos do Zaire, também já descrita no artigo anterior, deixava­nos muito tempo livre que se tornava necessário ocupar. A localização de Tridente não facilitava a existência de um terreiro para jogar à bola estando assim posta de parte uma possível ocupação dos tempos livres da guarnição, que eram muitos.




Em cima, o Posto do Tridente e, em baixo o Posto da Pedra do Feitiço, no rio Zaire, ambos junto à foz.



Entre aulas do segundo ano do Liceu que dava a grumetes e marinheiros, tal como os camaradas que nos precederam e os que nos sucederam, fizémos muitas obras, plantámos bananeiras, hortas; a conservação e reparação dos motores e botes, patrulhas no rio, patrulhas terrestres, escalas de serviços e caçadas nocturnas aos jacarés iam tomando conta do tempo.

Pessoalmente, nos diversos postos do Zaire onde estive, li imenso, tanto livros como revistas e jornais que tinha assinado. Através do Monde ia seguindo a guerra no Vietname e realizava a sorte que muitos de nós em Angola tínhamos por não estarmos num teatro de guerra como aquele.

Mas, aqui vai a segunda história curiosa passada no Tridente e em Noqui.

Como referi, Noqui estava na linha de fronteira com o Congo e, como tal, além da guarnição militar e de um administrador havia as autoridades fronteiriças e um posto da PIDE.

Em Angola, os Pides não andavam de chapéu e gabardina, com golas levantadas, como no “Puto”, e aparentavam serem pacatos civis frequentemente confundíveis com qualquer comerciante ou cantineiro. Uma das áreas em que eles eram peritos era a gestão (como dizemos hoje!) da informação.

A sua rede de informadores, de ambos os lados da fronteira, permitia terem uma noção bastante razoável do que se passava do lado do inimigo (IN), dos seus movimentos, iniciativas, problemas, dificuldades, etc. Mas a obtenção da informação não se fazia só com chá e simpatia ou a troco de uns cobres. Fazia­se também por troca de informações. Passava-­se para o lado de lá aquilo que se achava ser pouco importante ou não reservado, na expectativa de receber em troca algo de mais sério e substancial.




O Posto da Quissanga.

Com todo esse contacto acabava por se criar um certo à vontade, quase que alguma intimidade. Os turras do lado de lá conheciam bem a nossa PIDE e eles conheciam também razoavelmente alguns deles. Enfim, todos sabemos que a vida é feita de compromissos e importa que o resultado seja positivo.

Um dia, numa das tardes que fui a Noqui beber uma cerveja com os camaradas do Exército, o médico da companhia, o "Doc" não apareceu. Estava a dormir. A dormir às quatro horas da tarde? Sim, estava a dormir e não podia ser acordado. Tinha vivido uma aventura espantosa que terminara nessa manhã e estava a recarregar as baterias.

Dias antes, a altas horas da noite, vindo do Congo, tinham­-se apresentado no posto fronteiriço de Noqui dois carros civis com negros, alguns deles armados. Queriam falar com o nosso Pide com urgência. Tinha acontecido uma desgraça e só ele poderia, eventualmente, ajudar a resolvê-­la.

Que se tinha passado?

Nesse dia, algures longe e a leste de Noqui,os turras da FNLA tinham caído numa emboscada montada pela nossa tropa (mas não a de Noqui) junto à nossa fronteira com o Congo. Tinham sofrido umas baixas, mas o pior era que, na patrulha da FNLA que tinha sofrido a emboscada, tinha sido gravemente ferido o segundo comandante da base de Kinkusu. Ora a base de Kinkusu, para quem não sabe ou já não se lembra, era um dos principais, se não o principal campo militar da FNLA no Congo e servia de apoio logístico aos grupos de guerrilheiros da FNLA que actuavam no Norte de Angola. Obviamente, a base era por sua vez apoiada pelo estado congolês.

Ora acontecia que, o segundo comandante da base tinha sido gravemente ferido pelos portugueses, encontrava-­se em estado grave e recusava­-se peremptoriamente quer a ser evacuado para qualquer hospital de Leopoldeville (depois Kinchasa), quer a ser assistido por médicos da FNLA ou congolenses. Só admitia ser tratado por médico português e por nenhum outro. Os colegas dele que se desenrascassem e descobrissem um português que fosse lá tratar dele.

Assim, na fronteira de Noqui, depois de várias horas de viagem em picada, lá estavam os negros da base de Kinkusu a pedir ao nosso Pide que mandasse o "Doc" da companhia de Noqui com eles, de regresso a Kinkusu, para safar o segundo comandante deles que tinha sido ferido por um dos nossos!




Estação radionaval de Sto. António do Zaire.

Depois de muitas súplicas e muita conversa, o nosso Pide fala com o comandante da companhia que, depois de ponderar a situação, decide acordar o "Doc" e pôr­-lhe o problema: Estaria ele disposto a ir, não se sabia muito bem onde, tentar safar um principal do IN que tinha sido ferido por comandos nossos?

As condições eram mais que precárias: garantias de regresso e segurança eram zero. Mas, se o homem fosse safo, talvez tudo naquela região pudesse vir a melhorar. Estaria ele disposto a correr o risco? O "Doc" acabou por aceitar o desafio. Arranjou a trouxa, preparou os seus instrumentos e mezinhas e lá partiu, sozinho, sem escolta nem viaturas, com aquela turma semi­-turra e semi-­civil para destino desconhecido.

Depois de algumas horas de saltos e safanões lá chegou a Kinkusu. A base militar era grande, razoavelmente organizada e guarnecida, e lá lhe puseram o segundo comandante nas mãos. Com todas as dificuldades que são fáceis de imaginar, o "Doc" conseguiu extrair-­lhe a bala que estava alojada já não me lembro onde. Tratou o turra e quando estava já relativamente fora de perigo, ao fim de alguns dias, trouxeram­-no de volta a Noqui.

Tinha chegado nessa manhã, depois de alguns dias e noites de vigília ao segundo comandante de Kinkusu, completamente exausto e, nessa tarde, estava naturalmente a refazer-­se de tudo: do susto, da emoção, do risco que tinha corrido e do cansaço físico e psicológico.

Tinha sido tratado nas palminhas, com considerações e mordomias durante os dias e noites que tinha durado aquela aventura. Não o tornei a ver pois, passados poucos dias, o meu grupo de combate largava o Tridente. Também fiquei sem saber como evoluiu a acção militar naquela terra depois deste incidente. Mas certamente para o turra que tinha sido baleado e, para o "Doc" português que o tinha tratado e salvo nas circunstâncias que relatei, muito de importante se tinha passado.

Este caso que descrevi não é único. O que de único tem para mim, é ter-­se passado perto e nas minhas barbas. Episódios bizarros deste género passaram-­se em Angola repetidamente. Seriam eles o reflexo deste nosso porreirismo nacional também já assimilado pelos nossos negros de Angola ou será que é normal e corrente as guerras fazerem-­se assim?


Vasco Quevedo Pessanha
FZE - 7º CEORN


Fontes:
Arquivo de Marinha; Anuário da Reserva Naval, Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, Lisboa, 1992; Dicionário de Navios e Efemérides, Adelino Rodrigues da Costa, 2006; Texto do autor do blogue compilado e corrigido a partir do publicado na Revista n.º 10 da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Out 1999; Fotos de Arquivo do autor do blogue;

mls



08 junho 2017

Histórias do DFE 13 (III) - Angola, 1965-1967


Angola-Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 13

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 28 de Dezembro de 2009)




Vasco Quevedo Pessanha-7.º CEORN


Entre Agosto e Outubro de 1966 estou no posto do Tridente com o meu grupo de combate. O Tridente era o posto de fuzileiros mais a montante no rio Zaire e ficava relativamente perto de Noqui, junto à confluência do rio Lué Pequeno, afluente do Zaire.




A foz do rio Zaire com a vila de Noqui assinalada.

Cerca de 15 minutos de bote e bebia­-se uma cerveja fresca com os camaradas do Exército que ali estavam estacionados. Noqui fica a este do Tridente, numa curva do rio Zaire (que naquele ponto tem uma largura aproximadamente igual à do rio Tejo entre Belém e a Trafaria) na base de uma grande barroca. No cimo da barroca e a cerca de 10 quilómetros para o interior, ficava uma pista de terra batida, de que se serviam pequenos aviões militares que asseguravam ligações regulares com o Negage e Luanda.

A fronteira terrestre de Angola com o Congo era muito próxima de Noqui e, pelo rio Zaire, passavam diariamente vários cargueiros de 20.000 toneladas, e mais, que se dirigiam ao porto de Matadi, já na Républica do Congo.




...pelo rio Zaire passavam diariamente vários cargueiros de 20.000 toneladas, e até mais...

A nossa missão tinha um duplo objectivo: por um lado impedir a infiltração do IN, pela via fluvial do Congo para Angola e, por outro, patrulhar intensamente o interior com vista à detecção e eliminação do IN. Os que andavam por lá nesse tempo, eram os FNLA e os MPLA que não necessitavam do rio para nada, pois as ligações deles com o Congo, onde havia bases importantes, fazia­se atravessando pacatamente a fronteira terrestre fora de horas e em locais onde a tropa portuguesa não andava.




Vila de Noqui - Vista do Morro dos Canhões.

Durante todo o tempo que lá estive não tivemos qualquer acção de confrontação com o IN. Patrulhámos muito, nomadizámos muito também e aproveitámos para caçar, mas nunca vimos ninguém. O terreno era dobrado, com capim alto, com várzeas nos vales, arvoredo muito concentrado por manchas e nunca encontrámos povoações ou pessoas.

Aparentemente, dizia-­se, tinham fugido para o Congo nos inícios da guerra, em 61/62. Os horizontes eram largos e imensos e toda a região tinha uma beleza particular. Naquele lugar, aparentemente pacato, convivi de perto com duas situações bem diferentes uma da outra, mas bem reveladoras de aspectos da “nossa” guerra em Angola.

A primeira passou-­se dias antes da minha chegada ao Tridente e dos meus contactos com Noqui. Noqui era um lugar profundamente deprimente, com uma barroca por trás, um rio pela frente e calor, muito calor o tempo todo. Um dos oficiais milicianos da Companhia do Exército que lá estava estacionada, contava os dias que faltavam para terminar a comissão pela contagem dos cigarros que iria ainda fumar até lá.

Para o efeito tinha tracejado numa imensa folha de papel os cigarros que iria fumar até ao fim da comissão, à razão de vinte por dia. Cada noite, antes de se deitar, riscava na parede os cigarros que tinha fumado nesse dia e escrevia os que ainda estavam por fumar. Esta maneira de matar o tempo dá ideia do ambiente que lá se vivia.

Além de uma ou outra patrulha no interior, os jogos de cartas só eram interrompidos pelas viaturas que, duas vezes por semana, iam à pista de aterragem esperar o pequeno avião que trazia correio de Luanda.
Quase tudo o que tenho lido sobre a guerra de África, sobretudo artigos de toda a espécie, fazem gala em contar os horrores permanentes em que os nossos militares viviam.

Acho que nunca vi nada escrito sobre o ócio das guarnições que, na filosofia adoptada de quadrícula, estavam espalhadas por lugares onde pouco ou nada tinham para fazer, além de estarem lá. Noqui era um desses lugares. Não o era por ser terreno completamente seguro, como já verão de seguida, mas sim por que o IN e a tropa tinham o cuidado de se evitarem mutuamente e ninguém tomava grandes iniciativas.




Fuzileiros em acção.

Nestas circunstâncias, era normalmente muito difícil manter um rigor mínimo de horários, fardamentos, actividades, higiene e, sobretudo, de disciplina e prontidão militar. Quando a tudo isto se juntava um clima depressivo e neurótico dos oficiais, a situação descambava numa bandalheira por vezes aviltante, grosseira e, sobretudo, perigosa.

Porque afinal, apesar da relativa pacatez do local ele não era propriamente uma colónia de férias forçadas, e o IN, apesar de invisível, andava por lá. A bandalheira de Noqui teve consequências trágicas. No início o grupo que ia esperar o avião do correio era composto por uma GMC, dois Unimogs e dois ou três jeeps. O pessoal ainda tinha medo, ia fardado, armado e municiado.

O esquema de segurança era bem montado, alguém levava a “bazooka”, outro a MG 42 e, com toda a parafernália, lá faziam os dez ou quinze quilómetros em picada, no meio do capim, até à pista onde o avião aterrava em segurança, largava e levava o correio, doentes, homens que iam de férias, outros que voltavam, etc.

Duas vezes por semana, meses a fio. Patrulhas rotineiras, muita cerveja, bisca lambida, sueca e uma grande neura ocupavam o resto do tempo.
A pouco e pouco foi-­se facilitando. A GMC já não era precisa. Um dos Unimogs também não. O terreno é conhecido, é tudo boa gente, não se passa nada.

A coluna, inicialmente com quarenta homens, vai-­se reduzindo. Não vale a pena ir tanta gente. E para quê a “bazooka”? E a MG 42, que é pesadíssima? E a farda, que é quente e as munições que são desnecessárias? Se aparecer uma pacaça meia dúzia de tiros resolvem o problema e sempre se traz carne fresca.

No climax da bandalheira já só vai uma Mercedes com meia dúzia de homens em t­shirts, calções, descalços e uma ou duas G3. Os que vão são os que têm mais pressa em ler o correio deles. O cozinheiro também vai. E, por graça, porque não leva ele a “bazooka” desta vez? Vamos embora que se faz tarde e o avião está aí a chegar. O avião chega. Deixa umas cartas e leva outras. Bebem­-se umas cervejas juntos, dão-­se uns abraços e daqui a três dias cá estaremos todos outra vez. O avião parte e aquela tropa fandanga regressa a Noqui.




Fronteira Noqui-Matadi.

Só que desta vez o IN está no percurso. Teve meses para observar e estudar a evolução do comportamento daqueles homens, a bandalheira progressiva que se instalou naquela unidade e a total falta de segurança com que se movimentavam. E então dá-­se a emboscada. Bem planeada, cuidadosamente preparada, rigorosamente executada.

Dos 12 homens morreram 11, incluindo o cozinheiro da “bazooka”. O que se salvou, escondeu-­se no capim durante horas, antes de poder ir levar a triste notícia ao quartel de Noqui.

Esta história acabou como os tais relatos e artigos de que atrás falava, mas por exclusiva responsabilidade dos seus protagonistas e, especialmente, dos oficiais cujo comportamento irresponsável conduziu a que aquela simples rotina terminasse em mortes desnecessárias e inúteis.

Em várias circunstâncias que acompanhei de perto, as tragédias eram muitas vezes resultado da ligeireza e inconsciência com que algumas unidades se comportavam. Fazem lembrar um pouco aqueles suicidas das motos que gostam de andar na contramão na Estrada Marginal e, quando as coisas correm mal, se queixam­ de tudo menos deles próprios.

A outra história de Noqui ficará para uma próxima vez.


Vasco Quevedo Pessanha
FZE - 7º CEORN


Fontes:
Arquivo de Marinha; Anuário da Reserva Naval, Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, Lisboa, 1992; Dicionário de Navios e Efemérides, Adelino Rodrigues da Costa, 2006; Texto do autor do blogue compilado e corrigido a partir do publicado na Revista n.º 9 da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Jan/Mar 1999; Fotos de Arquivo do autor do blogue;

mls

02 junho 2017

Angola, 2 de Junho 1973 - A Morte na Picada do Chilombo para Lumbala


Uma coluna auto, do Destacamento de Marinha do Zambeze, emboscada na picada de Chilombo para Lumbala.

Resultado: 4 mortos e 1 ferido grave.


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 26 de Novembro de 2009)




Em cima, vista aérea do aquartelamento do Chilombo, junto ao rio Zambeze e, em baixo, a perspectiva do aquartelamento, da margem oposta do rio




Em 2 de Junho de 1973, após a formatura de serviço, foram preparadas duas viaturas, uma Mercedes e um Unimog, para seguir para a Lumbala, com uma escolta de uma secção comandada por um sargento.




Em cima, um posto de observação guarnecido com metralhadora Oerlinkon, de 20 mm e,
em baixo, podem observar-se os tejadilhos das cabines das viaturas Mercedes retirados,
para minorar o efeito das minas.




Não tendo aquele percurso sido sujeito a qualquer emboscada inimiga desde o início da comissão da unidade, na escolta das colunas, era mantido o efectivo de uma secção com LGF e MG-42.

A regularidade da coluna tinha por objectivo levar e trazer o correio, de e para a unidade, aproveitando para o efeito um táxi aéreo fretado pela JATA que, todos os Sábados, escalava Lumbala.



Em cima, a Picada do Chilombo para Lumbala e, em baixo, a LDP 208 varada na margem do rio, junto ao aquartelamento, durante a estação seca. A lancha era utilizada para a realização de operações e reabastecimento logístico.



Em serviço, seguia também na viatura o STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira e era acompanhado pelo Sr. Medeiros, instrutor da Auto-Eunice do Luso que necessitava levar documentação para seguir para o Luso, referente aos elementos da unidade que pretendiam tirar as cartas de condução.

Como habitualmente, seguia também na coluna um moço de botica, com bolsa de primeiros socorros e um operador com um rádio RACCAL TR-28A, tendo a coluna deixado a unidade às 07:55.

A cerca de oito quilómetros e meio do aquartelamento, o Unimog imobilizou-se, devido a um furo. A viatura da frente, a Mercedes, devido à nuvem de poeira levantada pelos rodados, não se apercebeu do facto, tendo continuado isolada e, cerca de quilómetro a quilómetro e meio à frente, caiu numa emboscada.

Tinham decorrido escassos minutos desde imobilização do Unimog, e ainda o condutor tentava mudar o pneu quando, mais adiante, se ouviram rebentamentos e tiros. O sargento que seguia nesta viatura e que transportava consigo o rádio, contactou imediatamente o Chilombo, informando do sucedido enquanto eram feitos todos os esforços para concluir a mudança da roda e seguirem em socorro do pessoal da Mercedes.

A distância entre as viaturas, a ser percorrida a pé, ocasionaria grande demora e, por outro lado, deficiências no equipamento de elevação do Unimog, associado a grande nervosismo, não permitiu concluir nos minutos seguintes a operação com sucesso, enquanto passavam pelo veículo imobilizado os primeiros reforços, a caminho do local provável do ataque.

Esta coluna de reforço, integrando duas outras viaturas, comandada por um oficial, foi mandada sair cerca das 08:10, depois de serem ouvidos, para sul do aquartelamento, rebentamentos e disparos de armas com grande intensidade.

Mais tarde, colhidas informações dos sobreviventes da Mercedes atacada, foi possível reconstituir, aproximadamente, os acontecimentos ocorridos, entre a hora de saída do aquartelamento e a altura da emboscada e que a seguir se reproduzem.

Num local habilmente escolhido pelo inimigo, foram abertos abrigos em meia-lua dos dois lados da picada. Por detrás deles, uma extensa floresta possibilitava uma retirada segura e, à frente, uma enorme “chana” dificultava o abrigo do pessoal das viaturas.

As bermas da picada, na “zona da morte” foram armadilhadas com cargas de trotil – foram retirados 23 kgs. – a serem accionadas por detonadores eléctricos. Por motivos que se desconhecem, provavelmente retirada precipitada, os detonadores não foram accionados à distância, evitando uma verdadeira chacina.




Cabina da viatura emboscada, sendo visíveis os efeitos dos impates dos tiros e, do lado esquerdo, os danos provocados pelo armamento inimigo.

A viatura Mercedes, ao abrandar numa cova do piso, foi simultaneamente atingida na cabine e no motor, com uma munição de morteiro 60 mm e um projéctil de LGF de 37 mm. Logo nessa altura, previsivelmente, os três ocupantes da cabine, os STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira, Mar FZE 771/68 António Cardoso Saraiva e o Sr. Medeiros, terão sido mortalmente atingidos, uma vez que a cabina e toda a parte dianteira da viatura se reduziram a uma amálgama de ferros torcidos e chapas esventradas.

Os três elementos que seguiam na caixa, os Mar FZE 717/70 João Gonçalves Nunes Pereira, Mar FZE 1214/70 Henrique Manuel Pais Fernandes e o Mar FZE 451/70 Rogério Fernandes Martins, logo que a viatura foi atingida e resvalou para a berma direita, tentaram saltar para esse mesmo lado.

O Mar FZE 717/70 João Pereira foi mortalmente atingido na cabeça, tendo ficado prostrado, agonizante, junto à viatura. O Mar 1214/70 Henrique Fernandes, que transportava a MG-42, foi ferido numa perna e o Mar FZE FZE 451/70 Rogério Martins saltou da viatura e abrigou-se na berma. Narra este último que, ao saltar para o solo, as explosões de morteiro e LGF eram contínuas, intervaladas com rajadas de metralhadoras. Tentou aproximar-se do camarada Mar FZE 717/70 João Pereira que ainda dava alguns sinais de vida mas expirou pouco depois.

Narrou ainda que, em seguida, se aproximou do outro camarada ferido, o Mar FZE 1214/70 Henrique Fernandes, que sangrava abundantemente duma perna e já tinha largado a MG-42. Não vendo quaisquer sinais de vida no local e continuando o fogo cerrado do inimigo decidiu transportá-lo e afastou-se, ladeando sempre a berma da picada, a única vereda onde existia ainda capim alto permitindo uma razoável camuflagem.

Distanciaram-se assim do local da emboscada, na direcção do Chilombo, mostrando já o Mar FZE Henrique Fernandes grande dificuldade em andar. Atravessaram um rio e já no meio dos caniçais o Mar FZE Rogério Martins efectuou um garrote na perna do camarada ferido. Alcançaram entretanto a picada, na altura em que chegavam os primeiros socorros.

Referiu o oficial que seguia na viatura da frente da coluna de reforço e alcançou primeiro a Mercedes alvejada que o IN já tinha abandonado o local quando lá chegaram. Ordenou que um grupo seguisse no encalço dos atacantes, enquanto outro prestava os primeiros socorros e montava segurança no local.

O Mar FZE 717/70 João Pereira encontrava-se morto junto à Mercedes. O STEN FZ RN António Piteira e o condutor da viatura, Mar FZE 771/68 António Saraiva foram encontrados na “chana” a cerca de 50 metros do local. O Sr. Medeiros foi também encontrado perto da viatura. Os três militares encontravam-se sem fardamento, equipamento ou objectos pessoais e também não foram encontradas as armas, uma MG-42 e quatro G3’s.

Inicialmente, apenas foram mencionadas três armas G3’s. Só mais tarde se confirmou que, consequência de uma troca de última hora de condutores, a precipitação fez com que o primeiro deixasse ficar a arma na cabina tendo o condutor que substituiu levado também a sua arma pessoal.

O grupo que efectuou a perseguição encontrou três trilhos iniciais, muitas grades de cerveja espalhadas que, originalmente, tinham sido carregadas na Mercedes, no Chilombo e, bastante para o interior, na mata, garrafas vazias e dispersão de trilhos no sentido geral S/SE. Considerado inútil manter a perseguição nestas condições o grupo regressou, tendo nomadizado a área até cerca das 11:00, hora a que os fuzileiros foram rendidos no local por militares do Exército de Lumbala.

Os corpos das vítimas foram retirados para o Chilombo, onde ficaram em câmara ardente durante duas noites, até 4 de Junho, com guarda de honra. Na manhã desse dia, pelo capelão do BCAÇ 3847, foi celebrada missa de corpo presente já com as urnas fechadas e, ainda durante a manhã, seguiram em coluna auto para o Cazombo.




Porta de Armas do aquartelamento do Chilombo.

À saída do aquartelamento, foram prestadas honras militares por toda a guarnição da unidade, profundamente abalada com o sucedido, numa última homenagem aos camaradas falecidos e que, de maneira tão trágica, perderam a vida ao serviço da Marinha e da Pátria. A morte daqueles camaradas e a conivência da população, deixaram marcas profundas que dificilmente se apagarão da memória de quantos ali viveram ou prestaram serviço.

Mortos em combate:

– STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira, CF 1, do 18.º CFORN
– Mar FZE 771/68 António Cardoso Saraiva, DFE 10
– Mar FZE 717/70 João Gonçalves Nunes Pereira, DFE 10

Ferido em combate:

– Mar FZE 1214/70 Henrique Manuel Pais Fernandes, DFE 10


O tipo de acção havida, a sua cuidadosa bem como pormenorizada montagem e a suspeita envolvência da população suscitou dúvidas, com alguns considerandos pertinentes:

• Facto inédito a assinalar naquela manhã foi o não aparecimento de qualquer elemento da população a pedir boleia para a Lumbala.

• Ainda mais significativo e denunciador de que a população do Chilombo estaria a par da presença de elementos inimigos nas proximidades, ou talvez até da própria acção – atitude pouco consentânea com o comportamento habitual do MPLA - foi a circunstância de, logo pela manhã, não ter aparecido nenhuma criança para vir buscar pequeno-almoço, nem quaisquer elementos da população para jogarem no campo de futebol de salão o que, invariavelmente, acontecia todas as manhãs.

• Acresce ainda que, a população do Chilombo, ao amanhecer desse dia e antes da acção, não saíu do “Kimbo”, provavelmente antevendo prováveis represálias que receavam seguirem-se à emboscada inimiga. Esta atitude da população reflectia, inequivocamente, um estado de comprometimento para não dizer de conivência.

• A montagem do minucioso dispositivo da emboscada foi certamente iniciada na véspera, o que fez estranhar a passagem, sem incidentes e na tarde do dia anterior, no percurso Lumbala-Chilombo, de uma viatura Land-Rover, transportando o Administrador da Lumbala, sem qualquer escolta. Também no percurso Lumbala-Chilombo, passou um veículo de carga civil na noite anterior e outro na própria manhã da emboscada, com saída da Lumbala, pelas 07:00.


Fontes:
Relatório do Comandante do Destacamento de Marinha do Zambeze, 1TEN FZ Pedro Baptista Coelho; colaboração do CMG José António Ruivo - 21.º CFORN; fotos de arquivo pessoal do autor do blogue;

Dicionário:
CF - Companhia de Fuzileiros; DFE - Destacamento de Fuzileiros Especiais; LGF - Lança-Granadas Foguete; IN - inimigo; "Kimbo" - aldeamento nativo; "chana" - planície, equivalente a "chão"


mls

01 junho 2017

Reserva Naval - Morto em Combate a 2 de Junho de 1973


António Bernardino Apolónio Piteira
(1947-1973)


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 1 de Dezembro de 2009)





Foi o único Oficial da Marinha de Guerra Portuguesa - Reserva Naval, morto em combate no período em que decorreu a Guerra do Ultramar nos três teatros de África, em Angola, Moçambique ou Guiné.

Recordado por quantos com ele iniciaram a caminhada na Armada, em 18 de Fevereiro de 1971, António Piteira integrou a Classe de Fuzileiros do 18.º CFORN.

A circunstância de ter sido acontecimento único na História da Reserva Naval, seria motivo suficiente para invocar a memória desse triste facto, mas a personalidade invulgarmente simples e simpática de António Piteira, agigantava-se pela desinteressada camaradagem e amizade manifestadas em permanente alegria de viver, marcando profundamente quem o conheceu ou com ele privou de perto.

Natural da freguesia da Quinta do Jogo, do concelho de Arraiolos, onde nasceu em 11 de Outubro de 1947, era filho de Balbina Rita Apolónio e de Augusto da Silva Piteira.

Deu os primeiros passos, no ensino, nas Escolas da região e por aí se manteve até ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

A entrada na Escola Naval interrompeu-lhe a vida académica, iniciando-o numa nova fase a que se entregou com contagiante entusiasmo, marcando camaradas e guindando-se a figura de relevo na Amizade, a mais nobre virtude da vida.

Promovido a Aspirante FZ RN em 13 de Outubro de 1971, frequentou o curso de Fuzileiro e foi destacado para Angola, onde chegou a 18 de Setembro do ano seguinte, com o posto de STEN, assumindo o comando do 3.º Pelotão da Companhia N.º 1 de Fuzileiros.

No dia 2 de Junho de 1973, pelas oito horas da manhã, integrado numa coluna de viaturas do Destacamento do Zambeze, em missão de serviço à Lumbala, foi alvo de uma emboscada inimiga. Dessa emboscada, ocorrida na Picada entre Lumbala e Chilombo, a cerca de dez quilómetros desta última localidade, resultou a morte de António Piteira.




O Destacamento do Zambeze e a picada de Lumbala para o Chilombo



Na passagem do 30º aniversário da sua morte em 2003, a simplicidade das palavras de Adelino Couto Rodrigues da Silva, camarada de curso e também fuzileiro, foi elucidativa:

“...Recordo-o com eterna saudade e grande emoção. Afirmo ter sido um privilégio conhecê-lo e usufruir da oportunidade de com ele privar e dele me ter tornado amigo. Tinha grande vontade de viver e o destino pregou-lhe uma partida.
Este mundo louco tem destas coisas.
Até sempre, camarada amigo. Um dia vamos encontrar-nos e retomar as nossas conversas, estupidamente interrompidas...”


António Piteira, ainda hoje mantém entre amigos a camaradas um sentimento de tristeza e perda que perdura depois de decorrido tão longo período, ficando indefectivelmente ligado à História da Reserva Naval e da Marinha como mais uma jovem vida ceifada numa guerra que não olhou a quem arrebatou ao nosso convívio.




Também na «Sala Reserva Naval da Escola Naval», a memória de António Piteira está nobremente representada e, anualmente, é atribuído um Prémio com o seu nome, ao Cadete que, de entre os seus pares, por votação secreta e universal de todos os alunos daquela Instituição manifestar, ao longo de quatro anos e de forma mais significativa, as virtudes que se reconheciam ao homenageado – Altruísmo, Camaradagem, Generosidade, Solidariedade e Simpatia.


Fontes:
Texto e imagens de Manuel Lema Santos, 1TEN RN (lic), 8º CEORN;

mls