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11 junho 2020

São Turras, Sr. Tenente, são Turras!...




Rio Cacheu ao pôr-do-sol (Abel Melo e Sousa -CFR Ref)


Havia já dois dias que as Lanchas fundeavam a meio do rio a jusante da Passagem de S. Vicente, concluído o Comboio de Farim. Aguardavam os batelões para Bissun, que chegavam e amarravam ao Tarrafo à espera da trasfega da carga para as LDM.

Dois dias sem mais preocupações que as que decorriam das tarefas diárias agendadas, as escutas do telegrafista, os banhos divertidos da marujada, a confecção das refeições e os momentos passados com as letras dirigidas às namoradas.

O dia, esse, esvaía-se com os últimos fulgores do sol a perderem-se por entre os galhos do arvoredo e as risadas do pessoal, as LDM à espera do momento para se abrigarem, furtivamente, já a coberto da noite, nos “amarradouros” conhecidos e reconhecidos da margem direita, a montante da Passagem de S. Vicente. E tudo sossegava.

À medida que a noite avançava sobravam as palmadas nos moscos – nome carinhoso com que se designavam os mosquitos – e, à medida que a noite avançava, os sussurros do sentinela e dos mais resistentes ao sono e aos sonhos, como que conversando com a gritaria da passarada noctívaga.

Nada faria crer que aquela noite iria ser diferente. O Tenente acendera atempadamente a malcheirosa espira verde “anti-mosquitagem” em cima do rádio e enchera os canudos do colchão pneumático que fazia de cama no chão da cabine de pilotagem.

Imaginava que, sendo ainda periquito, sempre era melhor respirar o ar impregnado dos cheiros oleosos do que o ar puro ao relento no tombadilho da lancha. Estava mais protegido…

Mas não era verdade, que ainda não tinha pregado olho quando, lá pelas 3 horas da madrugada, uma vozearia ensurdecedora lhe pôs no coração um sufoco e nas pernas um terramoto. Era a voz do Xixas a mais exaltada, estaria no seu turno de guarda, a gritar “são turras, são turras, trás a MG, vão já com uma rajada!!!”…

O Tenente, entretanto, perguntava a si próprio “o que é que se passa ali?”, todo num abanico. Recuperado o sangue frio concordou, ainda consigo próprio “porra!, eu sou o comandante, tenho de ir ver do que se trata”, sempre com a vozearia a crescer, a crescer por entre rajadas à espera.




LDM abicada no porto de Bissum - Rio Armada
Abastecimento e transporte de militares e populações


Fez das tripas coração e subiu ao convés com um enérgico:

– O que é que se passa aqui?

Respondeu o Xixas, já com uma G3 quase engatilhada:

– São turras, Sr Tenente, são Turras, vão já numa rajada!

– Onde é que estão os Turras?

– Ali, na canoa.

Era verdade; encostada ao tanque da água de estibordo encontrava-se uma canoa com cinco homens, pretos, tão pretos como a noite, vergados, completamente vergados ao sabor da sua sorte, dobrados pela cintura sobre as suas pernas.

O Tenente avaliou a situação, ou não avaliou, mas ocorreu-lhe, a ele sim, numa rajada, acalmar os ânimos com uma ordem:

– Ninguém dispara nada. O comandante sou eu. Tudo o que se fizer só pode ser feito com minha autorização! E não faremos nada com jeito se não nos acalmarmos todos!

Toda a gente estremeceu, porque a resposta foi um longo silêncio de poucos segundos que soprou ao Tenente “estás a tomar o pulso aos acontecimentos” e, com isto, saltou para o tanque da água. Percorreu o comprimento da canoa espiolhando o seu interior.

Apenas cinco homens ajoujados, cobertos por um fraco pano da mesma cor, preta, que talvez os abrigasse da esbatida frescura da madrugada. Nada de armas, que fosse de seus vestígios,
nada de nada, apenas medo, porventura, e silêncio. Falou aos homens ainda do tanque da água, também flutuador, acha o Tenente:

–Podem ser turras, sim, podem ser turras, mas nada o denuncia, que na canoa apenas estas cinco pobres criaturas!

– Mas... são turras, Sr Tenente, são Turras!,… insistia o Xixas

– Podem ser, sim, mas não há evidências nenhumas.




Refeição partilhada a bordo duma Lancha de Desembarque Média

Silêncio. Novamente a resposta foi o silêncio. Então o Tenente, sentado nos calcanhares, à proa da canoa, atreveu-se a perguntar:

– Alguém fala português? Silêncio, silêncio quebrado pelo Xixas:

– São Turras, Sr. Tenente, são Turras!

Uma rajada...

O Tenente subiu ao tombadilho e falou

– Podem ser turras, sim, mas do que me estou a lembrar agora, neste momento, é da minha terra, lá longe, do outro lado; e das laranjeiras e das parreiras; e de amigos…

O silêncio, o silêncio tinha tomado definitivamente conta dos acontecimentos.

O Tenente voltou a saltar para o depósito da água, cada vez mais confiante, e novamente sentado nos calcanhares, perguntou

– De onde vêm vocês?

Aconteceu, então, inesperadamente, um:

– De Bissum…




2 LDM abicadas
Abastecimento de combustível e víveres


Soltado pelo homem sentado a meio da canoa, que se desdobrou, lentamente, talvez com o pressentimento de “já me lixei, já nos lixámos” e, por uns segundos que foram uma eternidade, em silêncio, permitiu que os olhares, dele e do Tenente, se fixassem. E voltou a dobrar-se sobre si. O Tenente, como que impulsionado por uma mola, de pé, atirou:

– Ah! Afinal sempre há alguém que fala português!... E vão para onde?

– Para Bula!, respondeu, dobrado, o mesmo homem…

Com calma e uma paz imensa, juntou-se aos seus homens, junto da Oerlikon, – que todos se tinham levantado, todos sem excepção –, e voltou a falar ao pessoal:

– Eu não vos dizia?! Estes homens vão à cidade como também eu, nas segundas-feiras. Um vai renovar o BI, aquele vai tirar uma certidão de nascimento, o terceiro vai à Praça, o…

Lembrou-se de que, com Spínola, tinha havido uma inflexão na política de aproximação às populações designada, oficialmente, por “A PSICO”. Toda a gente aproveitava e reduzia, às tantas, tudo à “PSICO” – olh’á Psico!…

E voltou a saltar para o tanque da água para, num gesto inesperado para todos, – ou talvez não –, com um toque no ombro do homem a vante, ordenar:

– Sigam, amigos, vão à vossa vida…

E ficou só o silêncio, um longo silêncio, a morrer nos olhos ao ritmo lento das remadas, a canoa a cruzar o Cacheu para a curva à esquerda, lá longe, no vagar de quem espera, a todo o instante, o troar de uma rajada.
Ah! Como eu gostaria de saber o que se terão dito ao mergulharem na imensidão da noite, sós, na companhia fagueira do seu rio…


Marinheiro E*
*O Marinheiro “E”, de todos já conhecido, é o Sócio Originário n.º 1542, Oficial FZ RN que integrou os efectivos da CF 11 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné nos anos 1971/1972.


Fontes:
Com a devida vénia, texto compilado a partir de artigo já publicado na Revista "O Desembarque" n.º 30 da Associação de Fuzileiros em http://www.associacaofuzileiros.pt/


mls

25 maio 2020

O Combóio de Bissum


Guiné, rio Cacheu - Os combóios navais para Bissum





As LDM repousavam há já dois dias nas paragens da Passagem de S. Vicente. Era aqui que morria o Combóio a Farim. De dia a juzante da dita, fundeadas, braço dado, e à noite a montante, abrigadas na sombra acolhedora do tarrafo que bordejava a bolanha do outro lado, um nadita acima do ponto em que nascia a estrada que ligava a Ingoré, ao tempo desactivada.

Nesse interim, enquanto os batelões iam chegando ao ritmo rançoso dos seus barulhentos motores, que os anunciavam a milhas, a marujada, sem excepção, o que quer dizer que o comando também bastas vezes se associava, passava o dia entretido em brincadeiras que a água suscitava, os mergulhos, mas também a preparação das refeições, o correio para a família e amadas que ajudavam a preencher o santo dia.

A noite, essa era acordada, de quando em quando, pela voz em surdina das rendições das sentinelas, os gritos da passarada nocturnal e as palmadas disparadas na direcção da insuportável mosquitada que nos rondava ao som insistente dos seus apelos “precisas de mim, precisas de mim…”.

Reunida toda a esquadra havia que sacar do ORDMOVE e dar-lhe seguimento: passar a carga, batelão a batelão, para as LDM, manobra acompanhada pelo Cabo do exército responsável e, uma vez carregadas, zarpar pelo estreito e sinuoso «Rio Armada», tão sinuoso que as LDM não se protegiam uma à outra na maior parte dos "esses" do rio, tudo a postos para o que desse e viesse, o Patrão ao leme, um artilheiro na peça e o outro numa das MG42, um fogueiro atento ao roncar dos notores e o outro na MG42 do outro bordo, o telegrafista sentado à frente do rádio, ao lado do Patrão, no tejadilho da cabine de pilotagem o "basookeiro" e o ajudante com a arma respectiva, a basooka, todos cientes de que a atenção era a regra mestra até à rampa de abicagem na perpendicular ao aquartelamento do Exército, ali mãos dadas com a Tabanca. O Exército assegurava, nas imediações, por terra, a segurança do Combóio.

Na preparação para a abicagem, o Calado que por sinal nem falava muito, o que condizia com o apelido, questionou o Tenente com um respeitoso “Sr. Tenente, como quer que abique?”, que deixou o oficial um pouco desconcertado, a coçar a cabeça e a cogitar no “como quer que abique?”, reagindo instantes depois com um “ó homem, disso sabe você, faça o melhor que souber, que se alguma coisa correr menos bem cá estaremos para assumir”.




Bissum – Tabanca
Fotos em http://guine-bissum.blogspot.pt/ - Alf Mil Aníbal Magalhães


Realmente, aquilo foi como quem diz, ”limpar o cu a um menino”. Mas as coisas ainda não estavam sossegadas, porque logo que a LDM se calou, um novo apelo veio do Patrão: “Sr. Tenente, sabe, o Popeye”, – era a alcunha do outro Patrão, que fazia jus na sua imponente figura, espadaúdo, barba a condizer, cachimbo à maneira, cópia quase perfeita da entusiasmante figura da Banda Desenhada, ao epíteto com que o mimosearam –, “é novo nestas andanças, vem pela primeira vez e ainda não domina bem estas correntes e marés, digamos assim, que as havia mesmo, pelo que agradeço, então, que seja o senhor a indicar-lhe que abique a juzante da nossa Lancha, bem ditas a coisas «do lado de baixo», que não terá dificuldades na manobra”.

Silenciosamente o Tenente deslocou-se à ré e com uma sinalética simples e adequada às circunstâncias, usando mais o braço e a mão em vez da voz, que se perderia no meio do ronronar dos motores, indicou ao Popeye onde abicar, que fez saber que tinha entendido com uma espaçada abanadela de cabeça, com um sim três vezes acima e abaixo, perceptível pelas descontinuadas fumigações das cachimbadas. Concluída a manobra sem incidentes o Tenente veio sentar-se na mesa situada entre a Cabine de Pilotagem e a Peça, atento às tarefas de descarga da carga das LDM, na companhia do Patrão.

Permaneceram uns instantes calados até que o Calado, nova¬mente, resolveu falar:

– Sr. Tenente, desculpe ter perguntado, há bocado, como queria que abicasse…

– Ó Calado, fiquei surprendido, sim, aqueles instantes, mas é que não sabia mesmo o que devia de mandar fazer. Por isso, olhe, foi assim, saiu aquele “faça o melhor que souber”…

– Sabe, Sr. Tenente, já tem havido camaradas seus que se põem a dizer-nos como devemos de fazer, e às vezes andamos para aqui a rapar até acertar, e é porque acertamos nós… Mais uma vez, desculpe…

E voltou o silêncio, com o Tenente atento ao movimento humano, novidade para ele, dos homens da população de Bissum, num vai e vem entre as lanchas e as viaturas do aquartelamento, transbordando a carga que as LDM prestimosamente tinham levado. Concluída a operação, máquinas a funcionar, duas businadelas de despedida, gratos os militares pelos mantimentos, ala que se faz tarde, que havia que aproveitar ao máximo a força da corrente para mais depressa dizer adeus ao Armada.

Que, diga-se de passagem, tinha o seu encanto, o tarrafo que bordejava a água calcinado de combates anteriores, lá ao fundo, nas clareiras, a orla verdejante da mata, um crocodilo que, incomodado no seu solário, se levanta no seu vagar para mergulhar no seu ambiente, curva e contracurva num não despegar até ao abraço ao Cacheu.

E novamente S. Vicente, um abrandar de todas as tensões, e um hurraaa! de missão cumprida. Desceram os fuzileiros e a basooka do tejadilho da Cabine, abandonadas as MG42 dos bordos a vante, a Oerlikon em posição de descanso apontando a um inimigo imaginário no alto dos céus, o rádio sossegado nos bip bip bip, máquinas a todo o “vapor”, era assim que se dizia, que o único com trabalho garantido era mesmo o Patrão. Todos, tripulação e escoltas já só viam e sonhavam com Bissau, ainda tão longe.




Bissum – Transporte de tropas em LDM no rio Cacheu

Todos,… bem,… todos menos o Patrão por força das suas funções e o Tenente. Como? Pois, é que por alturas de Jolmete o bom do Calado resolveu falar para desinquietar outra vez o Oficial:

– Sr. Tenente, desculpe, pode chegar aqui à Cabine?

O Tenente deixou os restantes navegantes e aproximou-se da janela de pilotagem.

– Não, Senhor Tenente, é aqui, aqui mesmo junto a mim…

Com um ar circunspecto, bem visível nas rugas da testa, lá foi o bom do Tenente com ar de quem pergunta “mas o que é que vem aí agora?”.

Então foi assim:

– Senhor Tenente, o Senhor pôs-me à vontade em Bissum. Uns melhor e outros pior, na verdade quem sabe destas manobras somos nós. Maaass,… suspensão para encher o peito – sabe, nunca se sabe, mas pode acontecer um dia ter o Senhor de dizer mesmo como se faz, por virem todos, como o Popeye, pela primeira vez. E poderá um dia, oxalá nunca aconteça, ter de ser o senhor a deitar mão ao leme…

O Tenente escutava, longe de imaginar o que estava para chegar...

– Está a ver aquela mancha meio arenosa no meio do tarrafo? Ora agarre aqui no volante, – o leme, claro – eu vou aqui, não tenha medo, e experimente abicar lá. Vamos fazê-lo com a ajuda das máquinas, que se controlam, como sabe, com estes dois manípulos. Vá, afrouxe, vamos devagar, a corrente ainda está a descer, deixe descair a Lancha um pouco abaixo do ponto, isso, assim, vá, dê um pouco de máquina de bombordo, a da esquerda, isso…

E o Tenente abicou, com ajuda, mas abicou. Repetiram a manobra, perante o espanto dos tripulantes da outra Lancha, a do Popeye, que reduziu a velocidade intrigado com a agitação.

– Está a ver, nem é difícil…

O Tenente não dizia nada, e ainda não tinha acordado bem da lição quando de rajada vem novo ataque.

– Então e imaginemos que é atacado e tem de manobrar rapidamente, sair da linha de fogo e tem de fazer um pião? Ora deixe-me mostrar como é…

E mostrou.

– Viu? Então agora faça lá o Senhor…


Marinheiro E*
*O Marinheiro “E”, de todos já conhecido, é o Sócio Originário n.º 1542, Oficial FZ RN que integrou os efectivos da CF 11 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné nos anos 1971/1972.





Curso do rio Cacheu entre a foz e o rio Armada (a laranja) com a localização de Bissum


Fontes:
Com a devida vénia, texto compilado a partir de artigo já publicado na Revista "O Desembarque" n.º 29 da Associação de Fuzileiros em http://www.associacaofuzileiros.pt/


mls

28 outubro 2019

Guiné - Cinco Combóios no rio Cacheu, O "Boca de Sapo" caiu à água (I)


Guiné - Cinco Combóios no rio Cacheu, O "Boca de Sapo" caiu à água(I)



Fontes:
Texto e fotos já publicados na Revista "O Desembarque" n.º 27 da Associação de Fuzileiros, Junho 2017, autoria de Mar E, Sócio Originário n.º 1542, AFZ, Oficial RN da CFZ 11, Guiné 1971/1972;


mls

14 outubro 2019

Guiné - Companhia de Fuzileiros n.º 11 - O Istambul e o Oásis


Contos e Narrativas - "O Istambul e o Oásis, CF 11"


Fontes:
Texto e fotos já publicados na Revista "O Desembarque" n.º 26 da Associação de Fuzileiros, Março 2017, autoria de Mar E, Sócio Originário n.º 1542, AFZ, Oficial RN da CFZ 11, Guiné 1971/1972;


mls

23 agosto 2019

Chilombo, Leste de Angola 1974 - Rainha Nhakatolo


A visita da Rainha Nhakatolo


Nhakatolo Tchissengo, acompanhada pelo príncipe consorte Alberto Candembe, alfaiate de profissão, e por Kakengue, soba do quimbo (aldeia) do Chilombo, deslocava-se em di¬reção ao aquartelamento do Destacamento n.º 6 de Fuzileiros Especiais instalado no Chilombo, na margem do rio Zambeze, no designado saliente do Cazombo, Leste de Angola, com a altivez, a simplicidade e a segurança de uma rainha. Vinha em visita oficial, no âmbito da missão habitual de governo do seu povo.

Para organizar a visita ao Destacamento e acompanhar a Rainha, foi nomeado oficial do protocolo o STEN FZE Paiva e Pona. Era a meio da manhã, quando o calor já começava a apertar. Educada e simpaticamente terá oferecido à Rainha um chá e uns scones. Mas ela, pequenina e viva, sorrindo com um olhinho maroto, pediu: “Ténénté não pode ser antes uma cérveja?” Claro que rapidamente apareceram cervejas para toda a comitiva. De notar que este bem precioso àquela hora de sol e calor era ainda mais valioso, no nosso caso, porque dispunhamos de geladeira.




A Rainha Nhacatolo


O certo é que as relações diplomáticas entre o povo Português (aqui representado modestamente pelos fuzileiros do Chilombo) e o povo dos Luenas, na pessoa da sua Rainha, se estreitaram naquela manhã de calor africano e se fortaleceram à custa de uma boa quantidade de cervejas que, só à sua conta, a senhora bebeu. Descendia de uma velha linhagem de matriarcas – em África, o poder tribal assente numa liderança feminina e transmitido pela mesma via, por direito próprio e não por contingência sucessória, foi relativamente frequente e, por isso mesmo, diverso da norma vigente das sociedades ocidentais.

Nhakatolo era a rainha dos Luenas, povo também designado por Luvale, tribos residentes no Alto Zambeze, reino cujos contornos geográficos não coincidiam com as fronteiras oficiais do terri¬tório de Angola, estendia-se por uma vasta região que ia desde uma zona a sul do Congo (de onde provinham os seus antepas¬sados) até à zona da actual Zâmbia, para lá das margens do rio Zambeze.

Na sequência das disputas fronteiriças entre os colonizadores europeus, em finais do século XIX, a fronteira de Angola acabou por ser definida por arbitragem do rei de Itália em 1905, deixando os Luenas repartidos por Belgas, Ingleses e Portugueses, em três Colónias, hoje Estados diferentes. A força de união deste povo, mantido geograficamente disperso, mas culturalmente coeso, é o resultado de uma liderança no feminino, em que sobressai a figura da rainha Nhakatolo Ngambo (falecida em 1914 e cujo túmulo, no Lucusse, é hoje monumento nacional), da neta que lhe sucedeu, Nhakatola Kutemba (falecida em 1956) e sua filha Nhakatolo Tchissengo que nos visitou.

Nhakatola Tchissengo era uma rainha que visitava o seu povo – os Luenas – com a dedicação de uma soberana que tem o dever de acompanhar os problemas dos seus súbditos, manter a coesão no seu Reino e estabelecer parcerias com as autoridades civis ou militares que, exercendo outras formas de poder num mesmo espaço territorial, eram essenciais às boas relações, à paz e ao progresso do seu povo. A linhagem de rainhas Nhakatolo tinha por tradição prosseguir uma política de diplomacia inteligente, num equilíbrio que era um misto de aceitação interessada das autoridades dominantes e de defesa dos interesses próprios e dos valores fundamentais das suas gentes. A ligação à terra, o lugar fundamental da mulher que é quem dá de comer aos filhos, a preservação da paz e das boas relações com os poderes dominantes como elemento de protecção filial e de garantia de continuidade, tornaram esta cultura tribal diferente do que seria uma liderança masculina mais beligerante.

Talvez tenha sido esta a sua força. O respeito granjeado por estas mulheres educadas para reinar, trazer a paz e prosperidade ao seu povo ao longo dos tempos e em condições políticas inconstantes e adversas, faziam da rainha Nhakatolo que conheci, uma personalidade admirável e admirada. Tal como aconteceu com a sua mãe Nhakatolo Kutemba e a sua bisavó Nhakatolo Ngambo. Tal como hoje acontece com a neta que lhe sucedeu – a atual rainha Lurdes Tchilombo NhaKatolo, de 38 anos de idade, criada e educada pela sua avó, que tomou posse em 2004, e que é ouvida com respeito pelas autoridades oficiais.




Eduardo Ricou

Conta-se uma história que muito diz sobre a personalidade da Rainha Tchissengo, passada em finais dos anos 50 do século passado. O médico português especialista em lepra Eduardo Ricou (pai da Tereza Ricou), radicado em Angola, visitou a região habitada pelos Luenas numa campanha de vacinação.

Certo dia em que se deslocou a uma aldeia onde montou uma mesa debaixo de um frondoso embondeiro, com os seus instrumentos médicos e enfermeiros de apoio, só pode começar a tarefa depois de obtida a formal autorização da Rainha. Esta sentou-se majestosamente numa cadeira ao lado da mesa do médico, mandou içar a bandeira nacional e disse: “agora que já foi içada a bandeira portuguesa, Doutor, pode começar a consulta dos meus súbditos”.

Ou outra, em que interpelou o Governador Geral em visita ao distrito do Moxico e se queixou: “Governador, os teus elefantes causam muito prejuizo nas minhas colheitas, manda um caçador dar tiro neles”. E os ditos bichos terão sido abatidos. A este mesmo Governador terá pedido um automóvel estando disposta a pagá-lo em notas, e que, posteriormente, após obtida autorização de Lisboa, lhe terá sido mesmo oferecido.

Foi esta a “minha” rainha Nhakatolo, a que conheci em 1974, quando veio de visita a uma parte do seu povo, aquele que habitava a zona leste de Angola e que, por via disso, contactou as autoridades militares aí instaladas.

Consta que tinha visitado Portugal, durante a presidência de Craveiro Lopes, numa acção de sensibilização organizada pelo regime, com quem, interesseiramente ou não, pretendia mostrar boas relações.
Naquela época residia para lá da fronteira de Angola, território da Rodésia (actual Zâmbia) e deslocava-se entre as aldeias onde os Luenas se encontravam.

Tinha autorização especial para visitar os seus súbditos em território angolano ao abrigo de um tratado de protectorado celebrado com a Coroa Portuguesa em finais do séc. XIX e que sempre foi respeitado. Foi uma das rainhas Nhakatolo que mais marcas deixou, talvez por ter tido uma vida longa e por ter passado por períodos conturbados da história de Angola. Chefiou tribos e acompanhou várias aldeias luenas durante toda a sua juventude, exercendo uma aristocracia natural enquanto a mãe reinava – foi nomeada para assumir o sobado de duas localidades autónomas: Lupache e Luvua antes da morte da sua mãe, em 1956. Sucedeu-lhe formalmente, atravessou duas guerras – a guerra do ultramar e a guerra civil – e veio a falecer em Luanda em 22 de junho de 1992, estando sepultada em Cazombo, na província do Moxico. Em sua homenagem foi inaugurado, em 2012, um lar para a terceira idade que recebeu o nome “Rainha Nhakatolo Tchissengo”.

A minha estória da rainha Nhakatolo é um simples contributo para retratar uma rainha tradicional que era uma mulher poderosa, ciente das responsabilidades de governante da sua gente, que tinha a particularidade de ser um povo que não corresponde ao conceito linear de “Uma Pátria, uma Nação, um Território”. O território civil do quadrado do Leste de Angola, desenhado a régua e esquadro, não era a pátria dos Luenas, mas apenas um local onde uma parte deles se instalara, em resultado de um processo migratório de tribos de várias etnias, de acordos e protectorados estabelecidos ao longo de séculos com os países colonizadores e com outras tribos e etnias autóctones.




Eduardo Ricou dando consulta aos leprosos na presença da rainha Nhakatolo, em 1956

A visita à povoação e a receção à Rainha foi uma festa especial a que o nosso Comandante, 1TEN EMQ (FZE) Correia Graça e restantes oficiais assistiram, mais uma vez, num concílio que debaixo de uma grande árvore reuniu os mais velhos, os mais importantes representantes dos luenas e as autoridades existentes na zona. De pé, frente à assistência, a rainha discursou em português para o seu povo, dando bons conselhos, talvez cautelas para com o colonizador… mas acreditamos que fossem no espírito de manter o bom relacionamento, usufruindo dos bens possíveis (saúde e educação que, sendo escassas, sempre havia). Desse discurso retivemos três notas: “Os caçadores, quando encontrarem pessoas estranhas, nas suas caçadas, devem informar os fuzileiros. Os pescadores, quando também avistarem pessoas estranhas à povoação, devem informar os fuzileiros. E vós p... lembrem-se que os fuzileiros não têm aqui mãe, nem mulher, nem namorada e, por isso, devem tratá-los bem...”.

Depois, houve batuque pela noite fora… Este ritual tradicional, festa que une os Luvale (Luenas) e é um marco da preservação da sua cultura, realiza-se actualmente no dia do falecimento da rainha Chissengo.

Na era colonial, realizava-se em Chilombo ou em Lumbala, no período da guerra civil passou para a Zâmbia devido às disputas entre o MPLA e a UNITA e, actualmente, regressou ao leste de Angola, saliente do Cazombo, capital Luena.





José António Ruivo
Sócio Originário n.º 836
CMG FZE Ref.


Fontes:
Texto e fotos compilados da revista «O Desembarque» nº 24 da Associação de Fuzileiros, Junho 2016, página 35, sob o título «cultura&memória», com a devida vénia em http://www.associacaofuzileiros.pt;


mls

26 janeiro 2019

Reserva Naval e Capitão de Mar-e-Guerra Alberto Rebordão de Brito,


"In Memoriam" Alberto Rebordão de Brito, 1942-1994


Fontes:
O artigo a que o "link" acima estabelece ligação, é um resumo biográfico do Capitão de Mar-e-Guerra Alberto Rebordão de Brito, antigo oficial da Reserva Naval que, mais tarde, ingressou nos Quadros Permanentes da Armada, ascendendo àquele posto depois de um percurso brilhante; foi compilado, redigido e paginado pelo autor do blogue e já foi integralmente publicado na Revista «O Desembarque» n.º 25, Nov2016, da Associação de Fuzileiros; com a devida vénia à Instituição AFZ, aqui se republica;

mls

19 novembro 2018

Reserva Naval nos Fuzileiros


Pormenores adicionais de uma incompleta memória histórica



Escola de Fuzileiros - Porta de Armas e Parada


«Pensar o passado, compreender o presente, preparar o futuro...»

A temática «Fuzileiros» tem vindo a ser abordada com a frequência que lhe é devida institucionalmente pelo prestígio de que disfrutam, quer dentro da Marinha quer fora dela, amplamente justificado pela forma como se empenham e levam a cabo as complexas e diversificadas missões operacionais que lhes são cometidas ao serviço do País.

Sendo a Escola de Fuzileiros um estabelecimento de ensino com mais de meio século de existência, nesse já tão alargado percurso temporal, muitos foram os eventos que marcaram de forma significativa um caminho de valores, sendo que dever, honra, dignidade, amizade, camaradagem, solidariedade e entreajuda são atributos dos fuzileiros, ao serviço da cidadania em geral.



Sede da Associação de Fuzileiros


A Associação de Fuzileiros rege-se pela Lei e pelos seus Estatutos e Regulamentos, congregando em especial fuzileiros, oficiais, sargentos e praças nas situações de activo, reserva, reforma ou licenciamento de marinha, os seus familiares directos e outras pessoas que, voluntariamente, adiram aos princípios e aos valores plasmados naquele documento.

Tem também como missão e fins promover os laços e os contactos entre todos os sócios que sentem orgulho em integrar aquela Associação, por terem interiorizado, partilharem e defenderem o que já que constitui um traço genético herdado da Casa-Mãe, a Marinha.

O Corpo de Fuzileiros com o apoio da Associação de Fuzileiros, organiza anualmente o «Dia do Fuzileiro», evento destinado a reunir numa mesma data, na "Escola Mãe", todos quantos serviram e servem este Corpo de Tropas Especiais desde de 1961 até à actualidade.




Naturalmente que o universo de participantes foi consideravelmente alargado com o nascimento da Associação de Fuzileiros, fundada em 29 de Março de 1977 que, com as respectivas Delegações, Sócios, Familiares, Convidados e o apoio da Autarquia local, têm emprestado ao evento um impulso digno de registo.
Sendo um dos objectivos principais da Associação de Fuzileiros promover, permanentemente, o convívio entre antigas e novas gerações de Fuzileiros, tiveram a mais significativa expressão no percurso efectuado:

• Comemoração do «50.º Aniversário da Escola de Fuzileiros» levada a cabo em 3 de Junho de 2011 naquele prestigiado Estabelecimento de Ensino com a presença das mais altas individualidades da Marinha;

• Inauguração do «Monumento ao Fuzileiro, em 2 de Julho do mesmo ano, no Barreiro, com o apoio da autarquia local e a presença de altas individualidades da Marinha e do País. Ficou localizada na Praça dos Fuzileiros Navais, frente às instalações do Hipermercado Continente;



Monumento ao Fuzileiro

Com o apoio da Direcção da Associação de Fuzileiros, foram criadas diversas Delegações, alargando a área de influência e participação das populações, no âmbito de múltiplas actividades desportivas ou de convívio.

São disso exemplo as Delegações de Fuzileiros do Algarve, Beira Alta, Douro Litoral, Juromenha/Elvas, Polícia Marítima e ainda o Núcleo de Motociclistas da Associação de Fuzileiros e a Rádio “Filhos da Escola”.

Também uma obrigatória referência à empenhada participação da Associação de Fuzileiros na Unidade do Corpo de Cadetes do Mar Fuzileiros, à Divisão do Mar e das Actividades Lúdicas e Desportivas, culminando com a regular publicação da Revista da Associação, “O Desembarque”.

Merecedora de crítica seria a atitude de não referir o importante papel que a Associação de Fuzileiros representará no apelo à pesquisa, recolha, tratamento, conservação e divulgação adequada das memórias históricas e espólios da temática fuzileiros, fruto da participação efectiva de associados, por via do empenhamento pessoal, enquanto militares, nas missões em que terão estado integrados.

Terá ganho especial relevância num passado recente o período compreendido entre 1961 e 1975 da Guerra do Ultramar, em que as primeiras Unidades formadas na Escola de Fuzileiros a saber: Companhias de Fuzileiros Navais (CF), Destacamentos de Fuzileiros Especiais (DFE) e ainda Pelotões Independentes de Fuzileiros ou de Reforço tinham, quase invariavelmente, como destino os teatros de guerra de Angola, Moçambique, Guiné ou ainda pontualmente Cabo Verde.

Sem qualquer excepção para aquele período, Destacamentos e Companhias de Fuzileiros integraram sempre oficiais do quadro de Complemento da Reserva Naval.

Apenas à Institução Militar caberá ajuizar da competência, coragem, empenho, dedicação, abnegação com que cada militar terá desempenhado cada missão, atribuindo-lhe condecorações ou louvores, por vezes levadas a cabo com sacrifício da própria vida. Assim aconteceu e, ainda que no cumprimento dever, foram sempre demais, pela perda de vidas quase sempre em combate.

Como meu princípio habitual, eximir-me-ei a apreciações desse tipo, limitando-me a factos objectivos com suporte documental ou fontes que corroborem textos, relatos ou outro material.

Naturalmente que considero ter a liberdade de exprimir a minha própria opinião, sobretudo quando fundamentada pela participação pessoal em episódios ou vivências havidas, como oficial da Reserva Naval do 8.º CEORN*.

*Efectivamente o último com “E” de Especial já que a partir daquele curso passou a “F” de Formação, apenas por despacho administrativo, tida aquela denominação por mais conveniente, por quem de direito, claro! Como informação complementar, para que os próprios interessados fiquem com o mesmo conhecimento de que disponho, são os únicos cursos da Reserva Naval que dispõem de «Livros-Mestre» no Arquivo de Marinha. São consultáveis, apenas pelos próprios, depois de efectuarem e ser autorizado o respectivo pedido, de acordo com a Lei de Protecção de Dados.





LFG «Orion» com Destacamento de Fuzileiros Especiais a bordo

Durante dois anos, desempenhei na Guiné as funções de Oficial Imediato da LFG «Orion», integrado na guarnição que incluia um outro oficial, o Comandante, e ainda 4 Sargentos e 22 Praças.

Quer pelas características específicas daquele teatro de guerra, quer por algumas das vivências havidas, habituei-me a considerar aquela unidade naval como um todo, talvez um aprendizado da mais-valia colectiva em que a individualidade cedia prioridade ao conjunto. Como nos fuzileiros e com os fuzileiros com quem navegámos centenas de horas ao longo de dois anos de comissão.

Nas lanchas, fosse qual fosse o tipo, as guarnições não estavam preparadas para o confronto armado de proximidade física pelo que, em locais de risco elevado e perigosidade acrescida, era bem vinda e reconfortante a presença de fuzileiros a bordo.

Comandante-Chefe, Comandante de Defesa Marítima da Guiné, Fuzileiros, Exército, Comandos, Páraquedistas, Grupos de Combate, Pelotões, Feridos, População Civil e até agentes da PIDE/DGS ali fizeram horas de navegação.

Os Destacamentos de Fuzileiros Especiais (DFE) eram presença especialmente frequente, determinante nas operações planeadas - golpes de mão ou emboscadas - montadas ao inimigo nas margens ou proximidades daquele enorme emaranhado aquático, quase invariavelmente com o apoio das tão insubstituíveis como abnegadas LDM - Lanchas de Desembarque Médias e LDP - Lanchas de Desembarque Pequenas, alguns botes por perto, empilhados em cima do rufo da casa das máquinas, na cobertura do poço daquelas lanchas ou ainda rebocados.

Teve aquela classe de oficiais da Reserva Naval teve um papel determinante nos Fuzileiros? Indiscutivelmente que sim e, sem que deixem de ser considerados como apenas uma parte do Comando de um alargado conjunto de militares enquadrando Sargentos e Praças, é possível remeter para números reais o que representaram em Destacamentos, Companhias e Pelotões de Fuzileiros os militares da Reserva Naval.

Repetindo e enfatizando um excerto de uma publicação já por mim efectuada em Setembro de 2008 sobre a participação dos Fuzileiros nas frentes de Angola, Moçambique, Guiné e também Cabo Verde:

Reserva Naval - Os Números

“...Num total de 63 Destacamentos de Fuzileiros Especiais distribuídos por aqueles teatros operacionais, da totalidade de 139 oficiais neles integrados, 82 eram Oficiais RN (56%) e, mesmo dos 57 dos Quadros Permanentes que comandaram os DFE, mais de uma dezena tinham desempenhado missões anteriores como oficiais da Reserva Naval e vieram a optar pelo ingresso nos QP.

Maior acuidade ainda no tocante às Companhias de Fuzileiros em que, das 45 Unidades que nos mesmos teatros operacionais estacionaram, considerando incluídos os Pelotões Independentes e de Reforço (também em Cabo Verde), 217 dos 328 Oficiais (66%) que integraram o Comando das Companhias pertenciam à Reserva Naval. De entre estes últimos, 11 pertenciam à Classe de Médicos Navais e alguns Comandantes daquelas unidades eram igualmente oriundos da Reserva Naval.
Ainda numa outra perspectiva, em finais daquele ano de 1974, do total de Oficiais que prestavam serviço na Armada, 24% pertenciam à Reserva Naval e, considerando apenas os Oficiais subalternos, essa percentagem aumentava para 40%...”




Anuário da Reserva Naval 1958-1975 e Anuário da Reserva Naval 1976-1992

Estes elementos, ainda poderiam ser actualizados com pequenos ajustamentos já que, por defeito, nas fontes originais de consulta utilizadas, não estão mencionados alguns oficiais da Reserva Naval que, apenas mais tarde, foram mobilizados depois da constituição das Unidades, como rendições individuais e não tendo sido efectuado o respectivo registo. São gralhas normais em registos de pesquisa em que o rigor absoluto é inatingível.

Considerando apenas a totalidade da classe de Fuzileiros em duas gerações distintas de cursos da Reserva Naval:

• De 1958 a 1975, decorrido um período de 16 anos, já que em 1975 não se realizou qualquer curso da Reserva Naval, foram integrados em 25 cursos realizados, 1.712 cadetes, dos quais 465 (27.16%) pertenceram à classe de Fuzileiros.

• Para idêntico número de anos, de 1976 a 1992, em 78 cursos realizados, sendo que 41 realizados na Escola Naval e 37 na Escola de Fuzileiros, integraram a totalidade dos cursos, em ambos os estabelecimentos de ensino, 1.885 cadetes, dos quais 666 (35.33%) pertenceram à classe de Fuzileiros.

Resumo esclarecedor para o crescimento relativo da classe de Fuzileiros, mas suscitando interessantes questões no entendimento da razão para um aumento de 10% na totalidade de oficiais da Reserva Naval admitidos em igual número de anos.

Questões pertinentes partindo de conhecidas premissas quer no que concerne à redução do espaço geográfico nacional, confinado ao Continente e Ilhas, quer à retracção do dispositivo naval havido, ambos como resultado do final da Guerra do Ultramar.




O 1.º Oficial Fuzileiro Especial da Reserva Naval




2TEN FZE RN João Pedro Gião Toscano Rico

O 4.º CEORN foi o primeiro curso da Reserva Naval que incluiu também Fuzileiros. Em 6 de Outubro de 1961, foram incorporados 9 cadetes daquela Classe num curso que incluia um total de 44 cadetes.

Em 1 de Maio de 1962 foram promovidos a Aspirantes a Oficial, com a particularidade de ter havido um elemento da classe de Marinha que concorreu ao curso de Fuzileiro Especial (FZE), vindo a ser aprovado.

O 2TEN FZE RN João Pedro Gião Toscano Rico, foi o primeiro oficial da Reserva Naval que, sendo originalmente da classe de Marinha, ficou habilitado com o curso de Fuzileiro Especial depois de ter concorrido e sido dado como “Apto” no final do mesmo.

Foi destacado para Angola e integrado como quarto oficial no Destacamento de Fuzileiros nº 1, comandado pelo então 1TEN FZE Augusto Henrique Coelho Metzner.

Faz-se notar que, por esse facto e embora sem expressão especial, por esse facto terá sido aumentado um elemento à classe de Fuzileiros e reduzido o equivalente na classe de Marinha.




A Morte em Combate em 2 de Junho de 1973




STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira

Pertenceu ainda à Reserva Naval o único oficial da Marinha Portuguesa morto em combate durante a Guerra do Ultramar, ao serviço da Companhia de Fuzileiros n.º 1, em Angola.

Promovido a Aspirante FZ RN em 13 de Outubro de 1971, frequentou o curso de Fuzileiro e foi destacado para Angola, onde chegou a 18 de Setembro do ano seguinte, com o posto de STEN, assumindo o comando do 3.º Pelotão da Companhia N.º 1 de Fuzileiros.

No dia 2 de Junho de 1973, pelas oito horas da manhã, integrado numa coluna de viaturas do Destacamento do Zambeze, em missão de serviço à Lumbala, foi alvo de uma emboscada inimiga. Dessa emboscada, ocorrida na Picada entre Lumbala e Chilombo, a cerca de dez quilómetros desta última localidade, resultou a morte de António Piteira.




Em cima, vista aérea do aquartelamento do Chilombo e, em baixo,
cabina da viatura emboscada, sendo visíveis os efeitos dos impates dos tiros e,
do lado esquerdo, os danos provocados pelo armamento inimigo




Na mesma emboscada, morreram, igualmente em combate os seguintes Fuzileiros:

Mar FZE 771/68 António Cardoso Saraiva, DFE 10;
Mar FZE 717/70 João Gonçalves Nunes Pereira, DFE 10;

Ficou ainda ferido o Mar FZE 1214/70 Henrique Manuel Pais Fernandes, DFE 10 e morreu ainda um civil que seguia na cabina da viatura, o Sr. Medeiros;

No dia 18 de Dezembro de 2009 teve lugar, na Escola de Fuzileiros, em Vale de Zebro, uma singela mas significativa homenagem ao camarada da Reserva Naval António Bernardino Apolónio Piteira, pertencente ao 18.º CFORN, que morreu em combate em 2 de Junho de 1973, no Leste de Angola, Chilombo, vítima de uma emboscada inimiga, quando comandava uma coluna logística de viaturas no trajecto Chilombo – Lumbala.




Da esquerda para a direita, os comandantes Oliveira Monteiro (CCF), José Ruivo (AFZ),
Joaquim Moreira (AORN) e Ferreira de Campos (EF)


A homenagem consistiu na atribuição do nome do STEN FZ RN Apolónio Piteira à rua que liga a Parada da Escola de Fuzileiros - à qual foi recentemente atribuído o nome do Almirante Roboredo e Silva - à Messe de Oficiais.

Presidida pelo então 2.º Comandante do Corpo de Fuzileiros, CMG FZ Oliveira Monteiro, em representação do Comandante do Corpo de Fuzileiros, contou também com a presença do Comandante da Escola de Fuzileiros, CMG FZ Ferreira de Campos, com o Presidente da Direcção da AORN e várias outras Entidades e Camaradas da CF n.º 1 que se quiseram associar.



No dia 20 de Setembro de 2014, em sessão solene na Câmara Municipal de Arraiolos, com a presença da Presidente, Dr.ª Sílvia Pinto, teve lugar uma expressiva homenagem ao STEN RN António Piteira que enalteceu a iniciativa tomada dando a conhecer a representação que iria ter no Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos (CITA) em exposição alusiva ao tema.




Foi oferecida à autarquia o espólio de Marinha do camarada António Piteira em expositor apropriado com o boné, cordão de fuzileiro, galões de subtenente e fotografia em base cerâmica.
Seguiu-se uma breve e significativa cerimónia, com descerramento de uma lápide junto à placa da rua em seu nome, sita na Ilha do Castelo, com população local que fez questão de se associar ao evento.

Daqui saudamos todos os Fuzileiros, independentemente de posto, idade e situação, recordando especialmente os já ausentes dos nossos convívios.

Nunca serão esquecidos!




Manuel Lema Santos
8.º CEORN
Sócio n.º 2189 da AFZ


Nota: Este artigo foi publicado no último número da revista da Associação de Fuzileiros, "O Desembarque" n.º 31, Novembro 2018.

Fontes:
Texto e fotos de arquivo do autor; Anuário da Reserva Naval, 1958-1975, Comandantes Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, 1992; Anuário da Reserva Naval, 1976-1992, Manuel Lema Santos, 2011, Edição AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval; Fuzileiros, Factos e Feitos na Guerra de África, 1961/1974 - Guiné, Luís Sanches de Baêna, 2006; Foto do topo cedida pelo Comando da Escola de Fuzileiros;


mls