Guiné, rio Cacheu - Os combóios navais para Bissum
As LDM repousavam há já dois dias nas paragens da Passagem de S. Vicente. Era aqui que morria o Combóio a Farim. De dia a juzante da dita, fundeadas, braço dado, e à noite a montante, abrigadas na sombra acolhedora do tarrafo que bordejava a bolanha do outro lado, um nadita acima do ponto em que nascia a estrada que ligava a Ingoré, ao tempo desactivada.
Nesse interim, enquanto os batelões iam chegando ao ritmo rançoso dos seus barulhentos motores, que os anunciavam a milhas, a marujada, sem excepção, o que quer dizer que o comando também bastas vezes se associava, passava o dia entretido em brincadeiras que a água suscitava, os mergulhos, mas também a preparação das refeições, o correio para a família e amadas que ajudavam a preencher o santo dia.
A noite, essa era acordada, de quando em quando, pela voz em surdina das rendições das sentinelas, os gritos da passarada nocturnal e as palmadas disparadas na direcção da insuportável mosquitada que nos rondava ao som insistente dos seus apelos “precisas de mim, precisas de mim…”.
Reunida toda a esquadra havia que sacar do ORDMOVE e dar-lhe seguimento: passar a carga, batelão a batelão, para as LDM, manobra acompanhada pelo Cabo do exército responsável e, uma vez carregadas, zarpar pelo estreito e sinuoso «Rio Armada», tão sinuoso que as LDM não se protegiam uma à outra na maior parte dos "esses" do rio, tudo a postos para o que desse e viesse, o Patrão ao leme, um artilheiro na peça e o outro numa das MG42, um fogueiro atento ao roncar dos notores e o outro na MG42 do outro bordo, o telegrafista sentado à frente do rádio, ao lado do Patrão, no tejadilho da cabine de pilotagem o "basookeiro" e o ajudante com a arma respectiva, a basooka, todos cientes de que a atenção era a regra mestra até à rampa de abicagem na perpendicular ao aquartelamento do Exército, ali mãos dadas com a Tabanca. O Exército assegurava, nas imediações, por terra, a segurança do Combóio.
Na preparação para a abicagem, o Calado que por sinal nem falava muito, o que condizia com o apelido, questionou o Tenente com um respeitoso “Sr. Tenente, como quer que abique?”, que deixou o oficial um pouco desconcertado, a coçar a cabeça e a cogitar no “como quer que abique?”, reagindo instantes depois com um “ó homem, disso sabe você, faça o melhor que souber, que se alguma coisa correr menos bem cá estaremos para assumir”.
Bissum – Tabanca
Fotos em http://guine-bissum.blogspot.pt/ - Alf Mil Aníbal Magalhães
Fotos em http://guine-bissum.blogspot.pt/ - Alf Mil Aníbal Magalhães
Realmente, aquilo foi como quem diz, ”limpar o cu a um menino”. Mas as coisas ainda não estavam sossegadas, porque logo que a LDM se calou, um novo apelo veio do Patrão: “Sr. Tenente, sabe, o Popeye”, – era a alcunha do outro Patrão, que fazia jus na sua imponente figura, espadaúdo, barba a condizer, cachimbo à maneira, cópia quase perfeita da entusiasmante figura da Banda Desenhada, ao epíteto com que o mimosearam –, “é novo nestas andanças, vem pela primeira vez e ainda não domina bem estas correntes e marés, digamos assim, que as havia mesmo, pelo que agradeço, então, que seja o senhor a indicar-lhe que abique a juzante da nossa Lancha, bem ditas a coisas «do lado de baixo», que não terá dificuldades na manobra”.
Silenciosamente o Tenente deslocou-se à ré e com uma sinalética simples e adequada às circunstâncias, usando mais o braço e a mão em vez da voz, que se perderia no meio do ronronar dos motores, indicou ao Popeye onde abicar, que fez saber que tinha entendido com uma espaçada abanadela de cabeça, com um sim três vezes acima e abaixo, perceptível pelas descontinuadas fumigações das cachimbadas. Concluída a manobra sem incidentes o Tenente veio sentar-se na mesa situada entre a Cabine de Pilotagem e a Peça, atento às tarefas de descarga da carga das LDM, na companhia do Patrão.
Permaneceram uns instantes calados até que o Calado, nova¬mente, resolveu falar:
– Sr. Tenente, desculpe ter perguntado, há bocado, como queria que abicasse…
– Ó Calado, fiquei surprendido, sim, aqueles instantes, mas é que não sabia mesmo o que devia de mandar fazer. Por isso, olhe, foi assim, saiu aquele “faça o melhor que souber”…
– Sabe, Sr. Tenente, já tem havido camaradas seus que se põem a dizer-nos como devemos de fazer, e às vezes andamos para aqui a rapar até acertar, e é porque acertamos nós… Mais uma vez, desculpe…
E voltou o silêncio, com o Tenente atento ao movimento humano, novidade para ele, dos homens da população de Bissum, num vai e vem entre as lanchas e as viaturas do aquartelamento, transbordando a carga que as LDM prestimosamente tinham levado. Concluída a operação, máquinas a funcionar, duas businadelas de despedida, gratos os militares pelos mantimentos, ala que se faz tarde, que havia que aproveitar ao máximo a força da corrente para mais depressa dizer adeus ao Armada.
Que, diga-se de passagem, tinha o seu encanto, o tarrafo que bordejava a água calcinado de combates anteriores, lá ao fundo, nas clareiras, a orla verdejante da mata, um crocodilo que, incomodado no seu solário, se levanta no seu vagar para mergulhar no seu ambiente, curva e contracurva num não despegar até ao abraço ao Cacheu.
E novamente S. Vicente, um abrandar de todas as tensões, e um hurraaa! de missão cumprida. Desceram os fuzileiros e a basooka do tejadilho da Cabine, abandonadas as MG42 dos bordos a vante, a Oerlikon em posição de descanso apontando a um inimigo imaginário no alto dos céus, o rádio sossegado nos bip bip bip, máquinas a todo o “vapor”, era assim que se dizia, que o único com trabalho garantido era mesmo o Patrão. Todos, tripulação e escoltas já só viam e sonhavam com Bissau, ainda tão longe.
Bissum – Transporte de tropas em LDM no rio Cacheu
Todos,… bem,… todos menos o Patrão por força das suas funções e o Tenente. Como? Pois, é que por alturas de Jolmete o bom do Calado resolveu falar para desinquietar outra vez o Oficial:
– Sr. Tenente, desculpe, pode chegar aqui à Cabine?
O Tenente deixou os restantes navegantes e aproximou-se da janela de pilotagem.
– Não, Senhor Tenente, é aqui, aqui mesmo junto a mim…
Com um ar circunspecto, bem visível nas rugas da testa, lá foi o bom do Tenente com ar de quem pergunta “mas o que é que vem aí agora?”.
Então foi assim:
– Senhor Tenente, o Senhor pôs-me à vontade em Bissum. Uns melhor e outros pior, na verdade quem sabe destas manobras somos nós. Maaass,… suspensão para encher o peito – sabe, nunca se sabe, mas pode acontecer um dia ter o Senhor de dizer mesmo como se faz, por virem todos, como o Popeye, pela primeira vez. E poderá um dia, oxalá nunca aconteça, ter de ser o senhor a deitar mão ao leme…
O Tenente escutava, longe de imaginar o que estava para chegar...
– Está a ver aquela mancha meio arenosa no meio do tarrafo? Ora agarre aqui no volante, – o leme, claro – eu vou aqui, não tenha medo, e experimente abicar lá. Vamos fazê-lo com a ajuda das máquinas, que se controlam, como sabe, com estes dois manípulos. Vá, afrouxe, vamos devagar, a corrente ainda está a descer, deixe descair a Lancha um pouco abaixo do ponto, isso, assim, vá, dê um pouco de máquina de bombordo, a da esquerda, isso…
E o Tenente abicou, com ajuda, mas abicou. Repetiram a manobra, perante o espanto dos tripulantes da outra Lancha, a do Popeye, que reduziu a velocidade intrigado com a agitação.
– Está a ver, nem é difícil…
O Tenente não dizia nada, e ainda não tinha acordado bem da lição quando de rajada vem novo ataque.
– Então e imaginemos que é atacado e tem de manobrar rapidamente, sair da linha de fogo e tem de fazer um pião? Ora deixe-me mostrar como é…
E mostrou.
– Viu? Então agora faça lá o Senhor…
Marinheiro E*
*O Marinheiro “E”, de todos já conhecido, é o Sócio Originário n.º 1542, Oficial FZ RN que integrou os efectivos da CF 11 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné nos anos 1971/1972.
*O Marinheiro “E”, de todos já conhecido, é o Sócio Originário n.º 1542, Oficial FZ RN que integrou os efectivos da CF 11 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné nos anos 1971/1972.
Curso do rio Cacheu entre a foz e o rio Armada (a laranja) com a localização de Bissum
Fontes:
Com a devida vénia, texto compilado a partir de artigo já publicado na Revista "O Desembarque" n.º 29 da Associação de Fuzileiros em http://www.associacaofuzileiros.pt/
Com a devida vénia, texto compilado a partir de artigo já publicado na Revista "O Desembarque" n.º 29 da Associação de Fuzileiros em http://www.associacaofuzileiros.pt/
mls
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