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08 abril 2022

Guiné - A Linha do Cacheu


Guiné - A Linha do Cacheu e os combóios que por lá circulavam

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 16 de Abril de 2010/08 de Agosto de 2017)




Retomo aqui no blogue, com inteira actualidade e justiça, o artigo do Amigo e Camarada da Reserva Naval Elísio Pires Carmona, do 15.º CFORN, por ele redigido e então publicado nas revistas números 14 e 15 da Associação dos Oficiais da Reserva Naval, em 2003. Tão bem tece analogias entre linhas, combóios e rios da Guiné, que não resisti à tentação do acrescento humorístico da imagem acima, além de outros comentários soltos que entendi oportuno efectuar, a condizer com o relato original onde acrescentei algumas imagens.
Espero tolerância porque fui um dos que também lá estive e neles andei, com "passe" conferido pela Marinha... De quando em vez, nas margens, apareciam os pica-bilhetes com vários tipos de instrumentação para o efeito.
mls




“(...) só quem lá esteve é que sabe do que é que estou a falar...”


Ora, estou a falar do texto do José Manuel da Costa Bual numa das revistas da Associação publicadas. Estou a falar da Linha do Cacheu: linha de carris feitos de água barrenta pelos quais transitavam, uma vez por mês, combóios que tinham por locomotivas LDM´s e Batelões em vez de Vagões.



O mapa da Guiné, mostrando, ao centro, o rio Geba (Bissau) e, a norte,
o rio Cacheu em toda a sua extensão, até Farim (clique para ver ampliado)

Aliás como a Linha de Catió ou a Linha de Bedanda, permita­-se-­me a redundância. Sei do que fala. Porque também por lá passei. Porque também vivi as mesmas emoções...

Penso que tem razão de ser a sugestão deixada, na altura, numa Assembleia Geral da Associação: o nosso testemunho alimentará a nossa memória colectiva e contribuirá também, sem constrangimentos, para ajudar a fazer a História.

A tarefa que me propus então foi a de contar, rebuscando do fundo do meu baú, (já ouvi isto num sítio qualquer) memórias que, curiosamente, permanecendo tão vivas me dão a sensação, ao recordá­-las, de que estão a acontecer. De resto, como transparece cristalinamente do trabalho do Costa Bual. Mesmo tendo passado cerca de 40 anos...




Bissau - Do lado de dentro da ponte-cais, lado a lado, várias LDM's amarram de proa ao cais

A Linha do Cacheu começava, como todas as Linhas, em Bissau. Justamente na Ponte-cais. Era de lá que saíam as LDM-lanchas de Desembarque Médias, normalmente duas, por vezes três, Geba abaixo, rumo a Vila Cacheu. Mas o combóio, esse, só se constituía e assumia verdadeiramente a sua pomposa designação naquela localidade. Na qual se concentravam os Batelões a escoltar. O comandante, nós, seguíamos normalmente por via aérea, no pequeno Rallye – a nossa avioneta.




Vila Cacheu - O interior do forte, vendo-se o monumento ao Infante D. Henrique de que existiam várias réplicas naquele território.

Esta linha tinha, por assim dizer, um Ramal: o de Bissum. No regresso de Farim as lanchas aguardavam, na passagem de São Vicente – onde a estrada de Bissau, João Landim, Bula, Ingoré se interrompia, cortada pelo magnífico Cacheu – pela chegada de novos batelões.

Fundeavam, durante o dia, no meio do rio; amarravam­-se ao tarrafo durante a noite, dissolvidas na penumbra, por mor das coisas.




Ingoré - Em cima, uma bolanha junto da povoação e, em baixo, a estrada para o Ingorezinho.



As LDM eram, se houver alguém que não saiba, modestas lanchas de desembarque, armadas com uma Oerlikon (já não me recordo se se escreve assim) e duas MG 42 à proa, uma em cada um dos bordos, com uma equipagem constituída por um Cabo Manobra – o Patrão da lancha – um Telegrafista, dois Fogueiros e dois Artilheiros. Nos combóios, a tripulação era reforçada com meia secção de fuzileiros – mais seis elementos.

Os comandantes destas tremendas flotilhas – os Nimitzes, os Yamamotos, os..., éramos nós, mais a dar, algumas vezes, para Lafites, Drakes,... como se verá ao longo destas estórias.

Ah!, e faziam-­se bons petiscos a bordo, que metiam, algumas vezes, ostras fresquinhas pescadas, nomeadamente, no Rio Grande de São Domingos, mas também, no sul, no próprio Cobade.

Feita esta introdução, porque sobre o resto já contou, e bem, o Bual, passarei às peripécias vividas lá p'rós lados do Cacheu.




O rio Cacheu, consoante a hora do dia e o estado do tempo, proporcionava registos fotográficos ímpares



O “Calado”

O Calado era o patrão duma das LDM, no ano de 1971. Foi com o Calado que fiz o meu primeiro combóio, em Fevereiro. Deveria ter ido em Janeiro, com o Januário, para aprender o caminho, como era costume. Mas, numa partida (brincadeira) de “basquetebol”, num dos dias anteriores, no terreiro sobranceiro às nossas instalações, nas INAB-Instalações Navais de Bissau, onde havia umas tabelas e umas marcações meio sumidas no alcatrão, atropelado pelo Benjamim, dei cabo do braço.

Infelizmente, nesse combóio, o Januário, à pesca com granada, em Ganturé, ficou marcado pela explosão daquela em que tinha agarrado: granada de armadilha, explodiu logo que abriu a mão...




Rio Cacheu - Batelões atracados em Ganturé (Bigene)

Mas voltando ao combóio, vale dizer que a subida até Farim decorreu sem história. Apenas os olhos se arregalaram perante tamanho desconhecido, tanta grandeza. Aquele Tarrafo, alicerces mergulhados na água, na maré cheia, aquele Verde imenso, o Passaredo... e os pontos de referência que íamos guardando intuitivamente sem esforço: a foz do Rio Grande de São Domingos e mais acima a do Cabói, Jolmete, São Vicente – o rio a estreitar – a foz do Armada, as clareiras de Barro e de Maca e, finalmente, a 1ª estação, Ganturé, já ao fim do dia, e onde, por esta razão, costumávamos pernoitar.

Na manhã seguinte, com o dia a clarear, fazíamo­-nos rumo a Farim, com os mesmos cuidados, a mesma atenção e o mesmo deslumbramento, deixando sucessivamente para trás as clareiras do Sambuiá e do Tancroal, Binta e, por fim, FARIM. Em Farim, o rio era curiosamente largo.




Rio Cacheu - Magnífico por-de-sol, próximo de Ganturé

Para lá do mais a cidade tinha outras duas curiosidades: uma magnífica piscina, com café e esplanada, e a Geninha, a filha do Madeireiro mais representativo, cortejada por levadas de furriéis, alferes e até alguns distintos Tenentes da Marinha. O jantar, na primeira noite, era em casa dela. Pela minha banda ainda lá comi um, à boleia do Sousa Dias.

(Já agora, os nomes, nestas minhas crónicas (?), só por casualidade é que têm representação real...)

À Geninha vi­-a mais uma vez, em Bissau, pelo Carnaval de 72. Acho que se tinha cansado de Farim. Acompanhava o Varela, noite alta, à procura de um casaco, salvo erro, que por certo não lhe serviria para nada, já que fazia quase dois de mim em altura. Estremunhados, com o barulho, viemos dois à porta: eu e o Abreu, por sinal ambos em trajes tão menores que nos pareceu ridículo pedirem­-nos, àquela hora, um casaco.

Estávamos, se a memória não me atraiçoa, uns dez dias em Farim. Dias que davam para conversar muito, para ler muito, para bons petiscos bem regados a vinho misturado com cerveja, refrescada com umas pedras de gelo retiradas do frigorífico, ou arca congeladora, ou lá o que era aquilo que havia a bordo e funcionava a petróleo, para tomar banho no rio e fazer umas piruetas com o Zebro II. A nossa comida, a dos fuzileiros, era normalmente guardada em arcas térmicas onde a carne era congelada em gelo bem atacado. Íamos comendo por cima.




Farim, 1966 - A povoação fotografada da LFG "Orion", fundeada a meio da enseada fronteira.

Ah!, e jantávamos cedo, por volta das 18 horas, aproveitando os últimos fulgores do dia. As noites... As noites, em Fevereiro, eram bem agradáveis. Não fossem as melgas, que descobriam o mais ínfimo dos buraquitos no mosquiteiro para entrar sem cerimónia a perguntar insistentemente “precisas de mim, precisas de mim...” e ainda agora dormiríamos a sono solto...

Mas então, e o Calado? O Calado só aparece, permita­-se-­me a repetição, no Ramal de Bissum.

Um dia de espera em São Vicente, pelos batelões, passada a carga dos batelões para as lanchas, na ocasião apenas duas, lá fomos nós Armada adentro. Verdade se diga que a fama do rio, a sua estreiteza e as curvas muito arrematadas e “sem inclinação”, não davam motivos para grandes confianças.

A atenção redobrava: um dos artilheiros no “canhão”, outro artilheiro e um dos fogueiros nas MG's, dois fuzileiros no tejadilho da casa do leme com a “basooka”, o telegrafista no rádio e nós, os restantes, todos o mais compostos que era possível. Na altura, era-­nos dado ver ainda a vegetação das margens calcinada pelo muito fogo com que tinha sido massacrada em tempos anteriores. E uma ou outra clareira, vegetação esfuziante lá ao fundo, com um ou outro crocodilo aquecendo­-se ao sol.




Rio Cacheu - De S. Vicente a Vila Cacheu numa LDM.

Bissum não tinha Porto, nem ponte-cais – aquelas docas feitas de cibes, mergulhados no leito lodoso e pranchas de madeira pregadas com cavilhas. As lanchas abicavam na margem, baixavam a porta e a carga era descarregada pela população para as Berliet do Exército. Nunca saí da lancha para ver a aldeia ou o aquartelamento: nunca tive curiosidade para tanto, nem sei se algum dos nossos camaradas a terá tido.

Pois foi na abicagem que apareceu o Calado. Tão Calado tinha andado antes que mal tinha dado por ele. “Ó sr. Tenente, como é que quer que eu abique?” Acho que nem ouvi bem. “Ó sr. Tenente, desculpe lá, mas como é que quer que eu abique?” Acordei surpreendido pela pergunta e recordo­-me de ter dito mais ou menos isto, de rajada: “Ó Calado, não sei, disso sabe você, faça o melhor que souber, se houver problemas cá estarei para assumir as minhas responsabilidades, mas faça o melhor que souber”. E abicou.

Aproximava­-se, entretanto, a outra lancha, pilotada pelo Popeye – enorme, espadaúdo, barbudo e cachimbudo como a conhecida figura, dado à boa pinga e ao mulherio, mas ainda periquito nas lides da governação das LDM's. E o Calado voltou a interpelar­-me, agora com um pedido bem mais lógico: “Ó sr. Tenente, o meu camarada ainda é novo nestas andanças, agradeço­-lhe que lhe diga que abique a estibordo (bom, por baixo...); não terá problemas”. E não teve.

Sentado à mesa, instalada entre a cabine e a Oerlikon, enquanto assistia à descarga, o Calado arranjou coragem para me dizer “Ó sr. Tenente, desculpe lá a minha pergunta de há bocado, mas há combóios em que os seus camaradas nos dizem como querem que manobremos...”

Comprometo-­me, longa que vai esta lenga­-lenga, a contar em próxima estória a importância que o Calado teve, pelo senso e sabedoria – e muita era – para o sucesso dos meus combóios.

Presto-­lhe a minha homenagem, ao Popeye – nunca lhe conheci outro nome – ao Teixeira e a todos os outros com quem percorri os principais cursos da Guiné durante os 21 meses da minha comissão.

O “Directo” do Cacheu – Farim

Cada combóio era um combóio. Quero com isto dizer, que todos tinham ingredientes suficientes para que nunca se estabelecesse qualquer rotina, para lá das normais tarefas do governo e da segurança, que uns, valha a verdade, respeitavam mais do que outros.

Nunca troquei impressões com os meus camaradas sobre combóios. Acho que nunca ninguém me perguntou, nem eu perguntei: Correu tudo bem? O facto de partir e voltar, 15 dias depois, mais dia menos dia, era suficiente. Manifestávamos a nossa alegria, muitas vezes discretamente, e pronto. O Ordmove era cumprido... Era? Era, era cumprido. Mas...

Mas, no directo Cacheu - Farim não foi. Nem para cima, a caminho de Farim, nem para baixo, rumo à passagem de S.Vicente. Tendo chegado a Vila Cacheu por volta das 15 horas, com tempo para saudar os camaradas do DFE e dar umas voltas pelo burgo, no caminho de regresso às LDM cruzei-me com o Calado.




Cacheu - O antigo Aquartelamento do Cacheu (1966), mais tarde Messe dos Oficiais Fuzileiros (1969);
actualmente Casa do Governador da Região do Cacheu.

Ó senhor tenente! A que horas é a saída amanhã? Uns segundos de silêncio, embaraçosos, que o Ordmove até era confidencial (?)... logo interrompidos, também com algum embaraço, pelo Patrão:

Ó senhor tenente, fica só entre nós. Sabe, é que quem programa os combóios, com base nos elementos disponíveis, nem sempre conhece bem a realidade. Nós que passamos aqui a vida, ganhamos outras referências que nos ajudam bastante e que nos levam a fazer as coisas à nossa maneira. Respeitando sempre o essencial. Na lancha explico-lhe...

E explicou. Ordmove em cima da mesa e a Tabela das Marés aberta na página certa, eis os ingredientes para a 2ª lição – a 1ª tinha sido, lembram-­se, em Bissau, no 1º combóio. A maré começa a virar às 06:00 da manhã. Significa que às 05:00 está quase parada, ou mesmo parada. Se sairmos por essa hora, a crista da onda vai apanhar-nos já acima a montante, claro, de Jolmete, o que faz que andemos mais depressa.

Está decidido, Calado! Foi assim que, por volta das 04:30, motores a trabalhar e duas buzinadelas sonoras, puseram toda a gente de pé em três tempos e a andar, antes que pelo menos na outra lancha – e o Popey também devia ter consultado a Tabela e feito os seus cálculos – tivessem tempo de questionar a sua surpresa: Já?




Panorâmica geral de Ganturé (Bigene) com o rio Cacheu ao fundo

Às 15:00, com duas horas de avanço sobre o horário previsto, deixámos batelões em Ganturé e, gasto o tempo suficiente para os cumprimentos da ordem, aos camaradas residentes, ala que se faz tarde a caminho de Binta, onde ficaram mais dois batelões e, sem detença, rumo a Farim, já o Sol a baixar significativamente no horizonte.

Aportámos à Cidade Fim de Linha, pelas 21:00 horas, já que no troço final, com a maré a inverter o ciclo, a marcha se foi tornando lenta. Soube mais tarde que no Estado-Maior, onde pontificavam, entre outros, pelo menos na logística – patentes às malvas, o Almeida Carvalho, o Jorge Soares, o Aguillar e o Beato, este do meu CFORN, – se interrogaram, meio baralhados, ao receberem a obrigatória MENSAGEM DE CHEGADA, identificada com um nome inglês que já esqueci“ (...) não era para chegar amanhã de manhã?...”




Farim - O murete adjacente ao cais, as conhecidas acácias e a LDG «Alfange»
abicada para descarga e carga


Claro que a partir daqui, nos meus combóios, passou a ser respeitado apenas o envio da Hora de Chegada ao Destino, nunca batendo certo com o referido na Carta de Movimento, – vulgo Ordmove – como é óbvio.

Tive oportunidade, ainda neste combóio, de o justificar. É que, sem que alguém dos presentes, mais do que eu próprio, imaginava eu, soubesse da hora da saída, a meio da manhã apareceu um indivíduo negro a perguntar-­me a hora da partida. Que tinha um motor...avaria reparada... para enviar, aproveitando a boleia, já nem sei para onde.

Claro que dei ordem de andamento com a antecipação de duas horas, depois de me ter certificado de que tudo estava aprontado – “a DEPART” essa, foi enviada à hora justa...




Elísio Alfredo Pires Carmona
2TEN FZ RN
15.º CFORN


Fontes:
Texto compilado e actualizado pelo autor do blogue, a partir do publicado nas revistas números 13 da 14 - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Dez2001 e Jun2002; fotos e imagens de Manuel Lema Santos (8º CEORN - Curso Especial de Oficiais da Reserva Naval), Alberto Lema Santos (Alferes médico do BCaç 1933), Abel de Melo e Sousa (DFE1 72/74 - CFR Ref) e Carta da Província da Guiné - Ministério do Ultramar - Centro de Geografia do Ultramar, 1961;

mls



1 comentário:

Carlos Silva disse...
Amigo, está espectacular. Guiné é Guiné e o resto é paisagem. A minha próxima viagem à Guiné será contigo ao leme, num yate, barcaça ou LFG para navegar nessa linha do Cacheu e de outros rios. Assim, para além de passar a conhecer a Guiné a partir dos rios, sempre há uma possibilidade de ultrapassar os golpes, pois teremos uma oportunidade de ancorar para apanhar e comer umas ostras do tarrafe. Vê lá se aparecem camaradas da Marinha que queiram participar numa odisseia destas com um tipo do exército. Já tenho alguma experiência em navegar de LDM, jangadas e pirogas para atravessar o rio Cacheu em vários locais, mas principalmente entre o K3 e Farim e não coloquei a bóia ao pescoço.
Com um grande abraço
Carlos Silva

16 Abril de 2010, 12:58

29 agosto 2021

Guiné, voo 1390...Alouette III


Reserva Naval e Voo 1390...como é bom recordar!

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 9 de Janeiro de 2010/14 de Julho de 2017)


Guine, 1973 - No ar, a bordo de Alouette III

Quem navega no espaço cibernauta está sempre sujeito a ser colhido por surpresas, algumas vezes gratificantes.

Afinal, com um “click” certeiro, aí está um estímulo para continuar a defender e participar nesse grande espaço de liberdade onde, à distância desse “click” podemos avançar ou recuar no tempo.

Recuar mais de meio século no nosso volátil tempo de vida só é acessível, como plena vivência, se conseguirmos associar esse recuo, em sincronia, à recordação dos episódios vividos e às emoções sentidas nesse momento passado.

Aconteceu comigo há dois dias ao visitar um blogue de companheiros e camaradas da antiga Base Aérea n.º 12, em Bissalanca, na Guiné, como todos certamente se recordam. Um antigo camarada e companheiro enviou-me uma mensagem para ver o post «VOO 1390 COMO É BOM RECORDAR...» com um vídeo publicado no YouTube nesse mesmo dia, da autoria do Alferes Pilav Jorge Félix dos “Canibais” Guiné – Alouette III, e de que, com a devida referenciação, abaixo transcrevo integralmente o texto:



“VOO 1390 COMO É BOM RECORDAR...

Caro Victor,

Acabei de colocar no Youtube umas imagens que recebi do Sr. Pierre Fargeas e editei à minha moda. É uma viagem de BS até Binta, rio Geba e rio Cacheu. Da nossa Bissalanca só o emblema dos Canibais.
Mons Pierre Fargeas era o Técnico da fábrica dos Heli Alouette destacado em Bissalanca salvo erro entre 68 e 74. No ano passado, por magia, encontrámo-nos no ciberespaço da Net.
Aerograma para lá, aerograma para cá, recebi em dada altura um vídeo, gravado por ele durante a sua estadia em Bissau, com imagens minhas que depois "montei" e coloquei no YouTube com o título "BAFATA".
Nesse vídeo vêm mais documentos fotográficos que tenho andado a "trabalhar", com a devida autorização do Mons Pierre, e desta vez fiz uma pequena homenagem à Marinha. É uma viagem de Bissau a Binta. Tem momentos encantadores.
A chegada a Binta e o ambiente no cais foram para mim uma surpresa. Mas o que destaco e chamo a atenção é para o minuto 4 e 30 seg, a similitude que tem com imagens que o Francis Ford Copola empregou no "Apocalypse Now" em 1979. Ainda lá coloquei o "Satisfation" dos Stones mas depois decidi-me pela música do Mangione. São sete minutos, muito para a vossa paciência, pouco para o que os homens da Marinha fizeram por todos nós.
Se me permites, por ter lidado com eles o bastante para lhes saber os nomes, gostaria de os recordar nesta modesta homenagem: Fuzileiros, Rebordão de Brito, Benjamim Abreu (ambos já falecidos) e Alpoim Calvão.
Se escrevermos no Youtube, Binta Rio Cacheu, vamos ao endereço deste pequeno vídeo. Gostaria de ter a tua opinião quando o visses e se achares bem dá-lhe o destaque no nosso Blog, se ele tanto merecer.

Abraço, desta feita, do tamanho do Cacheu.

Jorge Félix
Alferes Pilav dos “Canibais” Guiné – Aloutte III







Aqui o deixo pregado como me deixou a mim, em nome da Marinha, dos Fuzileiros e dos locais evocados.

Guilherme Almor Alpoim Calvão, pertenceu aos Quadros Permanentes da Marinha de Guerra, comandou na Guiné, de 1963/65, como 1.º Tenente, o DFE 8, regressou àquele território em 1969 e comandou o CTG3 que incluía o rio Cacheu entre a foz do rio Canjaja, a montante, e a foz do rio Armada, a juzante, incluindo uma faixa terrestre a sul. Mais tarde, em acumulação, dirigiria o COP 3 que passou a contar com 3 Destacamentos de Fuzileiros. Em 1970 planeou, montou e dirigiu, a bordo da LFG «Orion» a Operação “Mar Verde” a Guiné Conakry. Ascendeu ao posto de Capitão-de-Mar-e-Guerra. Falecido.

Os 2TEN FZ RN Alberto Rebordão de Brito e 2TEN FZ RN Benjamim Lopes de Abreu, ainda ambos como Sub-Tenentes da Reserva Naval, o primeiro ingressando da Reserva Marítima e o segundo pertencendo ao 10º CFORN, integraram ambos o DFE 12 como terceiro e quarto oficiais, na Guiné, de 1967/69. Mais tarde, de 1971/74, estiveram novamente na Guiné, no DFE 22, o primeiro como Comandante do destacamento e o segundo como seu Oficial Imediato. Ingressaram nos Quadros Permanentes ascendendo ao posto de Capitão-de-Mar-e-Guerra e são ambos falecidos.



2 comentários:

Desconhecido disse...
Recordar é estarmos vivos. Naquele tempo, tal como hoje, o poder abrigava-nos a ser heróis. O poder, hoje, obriga-nos a ser mártires numa sociedade pôdre, de valores fúteis, que obrigam as pessoas a ter outra luta contínua para sobreviverem com dignidade. Porquê?
5 de junho de 2010 às 14:17

Rui Ferrão disse...
São de facto falecidos esses dois grandes Fuzileiros Benjamim e Rebordão de Brito, eu tive o prazer de privar com esses dois oficiais tanto na guerra da Guiné como depois na Metrópole, na formação de novos Fuzileiros. Embora não tivesse pertencido ao seu Destacamento (DFE12) mas sim ao DFE10 Comandado pelo Sr Comandante Pecorelli. Estes dois Destacamentos operaram juntos por diversas vezes inclusive nas operações "ALPHERATZ" E "ANTARES" das quais não tenho boas recordações. Hoje apenas e temos o dever os relembrar e prestar as nossas homenagens, como grandes Fuzileiros e patriotas que foram.
3 de maio de 2011 às 22:59


Fontes:
Texto do autor do blogue redigido a partir de mensagem enviada por Victor Barata, especialista da FAP/DO e autor do blogue http://especialistasdaba12.blogspot.com/2010/01/voo-1390-como-e-bom-recordar.html; Fuzileiros - Factos e Feitos na Guerra de África,1961/1974, Luis Sanches de Baêna, 2006; Imagem inicial cedência de Abel de Melo e Sousa, DFE 1, 1973;

mls

25 agosto 2021

Guiné, 1990 - LFP Lanchas de Fiscalização Pequenas abandonadas no rio Cacheu


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 8 de Abril de 2011)



"Guiné, 1990 - Quais seriam as três LFP - Lanchas de Ficalização Pequenas abandonadas na margem do rio Cacheu?"

(clicar na imagem ou no texto acima)




Fontes: Filme de Emídio Aragão Teixeira, 8.º CEORN, compilado e editado por mls; texto e fotos de arquivo do autor do blogue e texto étnico compilado de http://leoesnegros.com.sapo/BolamaFelupes.html; Setenta e Cinco Anos no Mar, Lanchas de Fiscalização Pequenas (LFP’s), 16º VOL, 2005;



Manuel Lema Santos
1TEN RN, 8.º CEORN, 1965/1972
1966/1968 - LFG "Orion" Guiné, Oficial Imediato
1968/1970 - CNC/BNL, Ajudante de Ordens do Comandante Naval
1970/1972 - Estado-Maior da Armada, Oficial Adjunto

16 agosto 2021

Guiné, 1969 - Navegabilidade dos portos do rio Cacheu


Rio Cacheu, Guiné - Navegabilidade dos portos em 1969





Fontes:
Texto do autor compilado e adaptado a partir de Arquivo de Marinha, Coloredo, CDMG185, Portos Guiné, 1969; Carta da Província da Guiné, Ministério do Ultramar, Centro de Geografia do Ultramar, 1961;

mls

12 abril 2021

1967, SCUT's na Guiné?....nem por isso!


"Guiné, 1967 - Humor puro, sem custos para o utilizador!"

Post reformulado a partir de outro já publicado em 2011.09.04/2018.08,30





Manuel Lema Santos
1TEN RN, 8.º CEORN, 1965/1972
1966/1968 - LFG "Orion" Guiné, Oficial Imediato
1968/1970 - CNC/BNL, Ajudante de Ordens do Comandante Naval
1970/1972 - Estado-Maior da Armada, Oficial Adjunto

Fontes:
Texto do autor do blogue com foto amavelmente cedida por Victor Silva, pertencente à guarnição da LFP «Deneb»;

26 fevereiro 2021

Guiné, rio Armada - O aparecimento da primeira mina aquática em Abril de 1967







Fontes:
Anuário da Reserva Naval 1958-1975, Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, Lisboa, 1992; algumas informações sobre este episódio encontrados nos arquivos do Estado-Maior do CDMG, tomando como base o auto de ocorrência levantado oportunamente pela Esquadrilha de Lanchas em Maio de 1967; Arquivo de Marinha; Pormenor da carta 285-A, de Cacheu a Barro, do Instituto Hidrográfico; Texto e fotos de arquivo do autor do blogue;


mls

29 dezembro 2020

Guiné, 1966 e 1967 - LFG «Lira» e Natal


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 1 de Janeiro de 2012/23 de Dezembro de 2019)

Guiné, 1966 e 1967 - Festividades de Natal/Ano Novo na LFG "Lira"


Na época do ano que ora se inicia, pese embora existirem condições de vida particularmente difíceis para muitos de nós, cidadãos comuns, mesmo em plena pandemia, é sempre positivo "renascermos", congregando energia e tenacidade de espírito extra para transmitir uma mensagem de Esperança e Fé num futuro melhor. Há sempre quem esteja em pior situção e talvez seja possível partilharmos algo de nós próprios.




Bissau, Dezembro de 1966 - Na LFG «Lira» a guarnição festeja a quadra natalícia


As fotos que se publicam da guarnição da LFG «Lira», na Guiné, atracada em Bissau nos idos anos de 1966 e 1967, encarnam exactamente essa filosofia, ilustrando ser possível celebrar Natal ou Fim de Ano num ambiente Familiar, com Alegria, Solidariedade e Camaradagem, mesmo num local hostil como aquele, em tempo de guerra. Nesta, como em todas as outras unidades navais ali estacionadas, conceito também extensivo aos outros Ramos das Forças Armadas.

Do Cacheu ao Cacine e de Teixeira Pinto a Buruntuma, havia arcaboiço espiritual para lembrar a Família, Paz e Amor, mesmo em condições de extrema dificuldade.




Bissau, Dezembro de 1967 - Na LFG «Lira» engalanada,
a guarnição posa e brinda para o registo de família com acompanhamento à guitarra






Mesmo a mascote de bordo, o polivalente "Cajú", faz questão de ostentar o galhardete da LFG «Lira»

Apenas duas semanas depois, a 13 de Janeiro de 1968, numa escolta efectuada à LDG «Alfange», no rio Cacheu - Tancroal, a LFG «Lira» foi violentamente atacada, sofrendo um morto quatro feridos graves e três ligeiros

Alguns deles figuram nestas fotos. Aqui os lembramos e honramos, mesmo os que já não partilham o nosso convívio.





Fontes:
Texto e imagens de arquivo do autor do blogue, sendo a foto de 1966 foi cedida pelo Arquivo de Marinha (1Sarg M Ernesto Lamarão) e as de 1967 cedidas pelo então 1TEN Carlos Dias Souto (CMG) que, ao tempo, comandava a LFG «Lira»


mls

20 dezembro 2020

Guiné, 1971 - Mensagem de Natal LFG «Sagitário» (II)


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 12 de Dezembro de 2011)

Guiné, rio Cacheu - Mensagem de Natal (II) da LFG «Sagitário», P 1131





Ano de 1971, Guiné...

Rio Cacheu, mês de Dezembro, Natal!

Com entusiasmo e eloquência visíveis, bem longe de lares e famílias, a guarnição da LFG «Sagitário», numa pausa entre fiscalizações e patrulhas, próximo da foz dos rios Armada e Canjaja, pouco disposta a deixar passar em branco a comemoração da festiva época, engalanou-se com um “banner” improvisado na ponte e construiu uma árvore de Natal, plena de imaginação e criatividade.

Com a própria LFG a fazer de pinheiro, cada elemento da guarnição substituiu os tradicionais balões, pinhas e outros enfeites, completando a decoração com galhos de tarrafo, o azevinho de substituição disponível à fartazana nas margens.

Notável espírito, o de não vergar às condições adversas e ao ambiente hostil da guerra, oposto à necessária harmonia da Paz e Amor, suposto assinalarem aquela época natalícia familiar.

Sem iluminação especial, aliás altamente inconveniente no local...




49 anos decorridos, vale a pena repetir esta mensagem de renovada esperança, numa sociedade global de valores abalados e futuro incerto por uma pandemia sem final confirmado.





Fontes:
Texto do autor do blogue; imagens gentilmente cedidas pelo então comandante da LFG «Sagitário», 1TEN Adelino Rodrigues da Costa;


mls

08 agosto 2020

01 agosto 2020

22 maio 2020

Guiné 1970/72, Fuzileiros e LDM - Lanchas de Desembarque Médias – Parte II


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 24 de Novembro de 2010)

Intimidades entre uma Companhia de Fuzileiros (CF 11) e as Lanchas de Desembarque Médias no teatro operacional da Guiné

Parte II

Os combóios de Catió

Exigiam cuidados redobrados. Recebido o ORDMOVE era certo e sabido que, vinte minutos depois de estudado, lá estava na sala do Estado-Maior a solicitar meia dúzia de botes e outros tantos motores na ponte-cais de Bissau.

Por uma vez, aconteceu que vinte minutos depois estava de novo a exigir mais seis botes e seis motores.

Os primeiros botes estavam todos furados e, quanto aos motores, não funcionou nenhum. Da segunda remessa alguns ainda foram devolvidos. Resultado final de seis botes novinhos em folha e também o mesmo número de motores novos. Funcionavam todos! Ainda hoje persiste a pergunta de porquê tão pouco cuidado nos meios essenciais para o cumprimento destas missões? No caso de surgirem problemas quem assumiria a responsabilidade?

É que aconteceu, num dos combóios, quando nos aprontávamos para carregar os nossos materiais logísticos, armas e mantimentos, encontrar cada LDM com uma BERLIET no “Poço”. Era impossível acomodarmo-nos e, pior ainda, defendermo-nos. Um salto ao Estado-Maior e uma explicação: “Tinha de as levar, porque tinha sido assumido o compromisso de as transportar até Catió, onde faziam muita falta”.

– “Ah, e quem assumiu o compromisso?”, depois de informado, solicitei apenas que fosse redigida uma declaração na qual quem tinha assumido o frete se responsabilizasse pela segurança do combóio. Como era evidente, aconteceu uma recusa.

– “Está a gozar comigo?”, informei que esperava, no Cais, que a situação fosse solucionada e retirei-me com o “Determina mais alguma coisa?” da praxe.




Guiné - Mapa da região de Catió

As BERLIET seguiram para Catió, realmente, mas a bordo de batelões. Para gáudio dos oficiais do Batalhão de Catió, informados de que o oficial do combóio se tinha recusado a levar as viaturas…

Que fé dá o relatório destes acontecimentos? “NIL” (nada ou zero). Ao quarto relatório devolvido, igual aos anteriores, informei que tinha percebido, finalmente, o que se desejava e inscrevi, em todos os items, a célebre “NIL”.

Mas os trabalhos não terminaram aqui. Dado que a partida foi atrasada cinco horas – às 16:00, soube depois, ainda no Estado-Maior alguém perguntava se sempre tinha saído ou não... - tivemos de fundear na Ponta dos Escravos, e fazermo-nos ao caminho, de manhã, duas horas mais cedo para o encontro com os meios aéreos de apoio, na foz do Cobade.




A Oerlikon, (para a fotografia), podendo distinguir-se, ao fundo, um dos T6 do apoio aos Comboios do Sul, a Catió e a Bedanda – mas a fotografia pretendia, mesmo, era apanhar o mosquito.

Mal habituados, poupava-lhes três quartos de hora no tempo de apoio, - por ser largo no seu curso inferior, o Cobade oferecia boas condiçoes de defesa e eu adiantava caminho -, os T6 questionaram o Estado-Maior sobre a razão de, desta vez, o apoio ter demorado o dobro do tempo do costume.




Em cima, escolta de botes aos combóios do sul, no rio Cagopere, afluente do Cobade que dá acesso ao porto interior de Catió, e, em baixo, aquele porto na baixa-mar



E lá vem nova chamada ao Estado-Maior:

“Porquê?”

– “Ah, estão equivocados, porque prestaram o apoio que tinham de prestar.”

– “Como?”

– “Muito fácil, a que horas o iniciaram e a que horas o ORDMOVE o previa?”

– “Olha…?!”

Mas, é claro, no relatório nada consta… Como podem os investigadores tirar conclusões correctas? Ficarão, sempre, pela aproximação...




Em cima, chegada a Catió. Podem também distinguir-se ainda o artilheiro e o "basookeiro", cada um no seu posto e, em baixo, descomprimindo




Rendição do Rendição do Batalhão de Catió

Neste combóio para sul participaram três LDM, houve um “rendez-vous” (encontro) com a LDG “Montante” na foz do rio Cumbijã, idas com escala e descarga de pessoal e material a Cabedú e, para montante, em Cufar.

Era especialmente impressionante a viagem ao aquartelamento de Cabedú localidade no rio Lade, afluente da margem esquerda do Cumbijã, quase junto à foz no extremo sul do Cantanhês, onde estava estacionado um pelotão do Batalhão, com um mais do que exíguo porto onde, na preia-mar, não era nítido o curso do braço de água.

Uma semana depois, novo rendez-vous com a LDG “Bombarda” na foz do Cobade. Em virtude da noite tempestuosa o encontro com aquela unidade naval foi atrasado duas horas.

Com o tempo de maré limitado, subi ao tombadilho da LDG "Bombarda". Dei, para grande surpresa minha, com um Tenente-Coronel e um Major, ambos ajoelhados a enrolar um dos clássicos colchões pneumáticos em uso na época.

Toquei no ombro do Senhor Coronel, que olhou para mim – ainda mais surpreendido, porquanto o meu uniforme, (passe a redundância, já passaram 37 anos e posso confessá-lo) resumia-se ao dólmen do camuflado, sem galões, um panamá de praia aos quadradinhos pretos e brancos, um calção preto de ginástica usado nas futeboladas de 5 e as botas de lona.

Comuniquei-lhe: – Sr. Coronel, estamos atrasados 2 horas em relação à partida, por isso temos três quartos de hora para passar as bagagens para cada uma das LDM – abeirámo-nos do “Poço” da LDG e concretizei o quê e as lanchas respectivas. O homem, totalmente confundido, lá se resolveu à terceira insistência e sem hesitar, a dar as suas indicações, sem saber quem era o interlocutor a dar-lhe instruções. Acrescentei que, antes de o pessoal embarcar, teria de dar algumas indicações que tinham de ser escrupulosamente cumpridas.

Em meia hora estava todo o material dentro das LDM, o que revelou uma grande eficácia. Determinei então, depois de o referido senhor, acompanhado de um Major sorridente, ter anunciado que eu próprio iria falar, o seguinte:

1. Se houvesse guerra ela seria travada apenas por nós.

2. Por isso, toda a gente tinha de ir abrigada no “Poço” das LDM.

3. Para evitar surpresas e acidentes, culatras atrás, carregador fora da G3 e câmara sem qualquer munição.

Largou a primeira LDM, largou a segunda e pedi então aos Senhores Tenente-Coronel e Major que descessem para a terceira. Desci então para o bote que me aguardava e segui para me juntar à primeira. Como o tempo entretanto já aquecera, o dólmen já se tinha tornado num empecilho e já tinha sido despedido. Belo fardamento, não acham?…

À chegada a Catió já me tinha composto, mais ou menos, porque tinha vestido o calção azul da ordem e tinha colocado o respectivo boné. Esqueci-me, todavia, da camisa e dos respectivos galões.

O bom do homem passou a viagem a perguntar ao Patrão da LDM e aos restantes elementos da Marinha quem era eu. Sem que tivessem ordem para isso, levaram o tempo todo a responder, simplesmente, “é o comandante”.
Quando a LDM que o transportava abicou, com o cais cheio dos velhos e dos novos que já se lhes tinham juntado em festa, o Senhor Coronel, empoleirado na porta da LDM, travava com os braços alguém que se lhe pudesse adiantar.

Uma vez pés em terra, apenas se preocupou em encontrar-me no meio da multidão para me agradecer a belíssima viagem até ao seu destino, sem ligar a qualquer dos surpreendidos camaradas presentes.

Nota final: aos que aguardavam no cais dei um quarto de hora para descarregarem os respectivos materiais. Descarregaram os deles e os nossos. E obrigaram-nos a voltar atrás, já o combóio se aproximava da foz do rio Cagopere…




Em Abril de 1967, um avião Harvard T6 sobrevoa o rio Cumbijã, no decorrer da protecção a um combóio da lanchas e batelões


A vida a bordo das LDM

Não era de hotel de primeira classe, mas naquelas idades…

Bem, instalávamos as arcas congeladoras, atacadas com os mantimentos, normalmente carne de vaca e de frango, os fogões Hipólito a petróleo, que davam para fazer bons petiscos, os tachos, claro, de alumínio, - agora há tachos bem melhores...-, os nossos sacos, os nossos colchões e as nossas redes mosquiteiras, no “Poço”.

As redes mosquiteiras eram relativamente eficazes e protegiam-nos das três variedades de mosquitos existentes: Uma primeira vaga de batedores (davam connosco), a segunda de sapadores que descobriam as entradas mal tapadas e a terceira vaga, lá pela meia-noite, era constituída pelos sugadores. Com estes travávamos boas batalhas durante a noite, por vezes durante a noite inteira.

No regresso de todos estes combóios, para norte ou para sul, baixada a guarda, os botes lançavam-se às ostras presas no tarrafo, quer no rio Cobade, quer no Rio Grande de S. Domingos, afluente do Cacheu. E acontecia uma festa de forte camaradagem entre a escolta de Fuzileiros e as guarnições das LDM...




Elísio Pires Carmona
2TEN FZ RN
15.º CFORN


(final)

Fontes:
Texto compilado a partir de artigo e imagens cedidos pelo 2TEN FZ RN Elísio Pires Carmona, 15.º CFORN; restantes imagens de arquivo do autor ou cedidas pela Revista da Armada, Arquivo da Marinha, CAlm Joel Pascoal e CFR Abel de Melo e Sousa.


mls

20 maio 2020

Guiné 1970/72, Fuzileiros e LDM - Lanchas de Desembarque Médias – Parte I


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 21 de Novembro de 2010)


Nota do autor do blogue
:

Por ocasião do Congresso dos 50 Anos da Reserva Naval, decorrido de 2 a 5 de Outubro de 2008, em Aveiro, foram efectuadas variadas comunicações aos presentes, abordados por diferentes personalidades e versando temática diversificada.

Sem que a peça abaixo publicada, enviada por um camarada da Reserva Naval, represente qualquer apreciação diferenciada sobre o objectivo, fases e intervenções do evento então levado a cabo, Marinha, Reserva Naval, Guiné, Cacheu, LDM’s e Fuzileiros representam sempre renovadas oportunidades para abordagem de memórias históricas.

Inesgotáveis no tema, nos locais, nas acções e nos intervenientes.

Também na estranha mística com que sempre olhei e respeitei o Cacheu , de que ainda hoje perdura a imagem de uma sinuosa e rítmica dança da navegação, ora a bombordo ora a estibordo, arcadas de tarrafo frondoso e reverente, tímida protecção de unidades, pessoas e bens, interrompida ocasionalmente por clareiras imprevisivelmente armadilhadas.

Em quatro anos que separaram ali a minha passagem da do 2TEN FZ RN Elísio Alfredo Pires Carmona, poucas alterações significativas terá havido. Salvo, claro, a agudização crescente de um conflito sem solução à vista. Melhor do que eu, aquele meu camarada da Reserva Naval, percorre estes caminhos num texto simultaneamente crítico e esclarecido.

mls



Intimidades entre uma Companhia de Fuzileiros (CF 11) e as Lanchas de Desembarque Médias no teatro operacional da Guiné

(Parte I)




No rio Cacheu, em segundo plano um batelão navegando para montante

Entendi redigir este documento assim intitulado como um desafio, sublinhando o elevado tributo que aquelas unidades navais pagaram durante todo o tempo em que decorreu a Guerra Colonial.

Tomei esta decisão enquanto então oficial de uma Companhia de Fuzileiros, a CF11. Não pretendendo ser especialmente conhecedor da temática LDM, mas não sendo meu timbre recusar desafios, propus-me, salvaguardando a questão desta leitura se tornar uma verdadeira seca, falar do que foi a minha experiência, tantas vezes as LDM foram o meu abrigo.

Posto este ponto prévio, permitam agora que me apresente, digamos que sob a forma de breve ficha pessoal:

De meu nome Elísio Alfredo Pires Carmona - 2TEN FZ RN Pires Carmona -, pertenci ao 15.º CFORN, concluído em 04-09-69, efectuei uma comissão na Guiné, CF11, de 30.12.70 a 06.10.72, aliás com um muito engraçado e “sui generis” início, que exigiu duas partidas: a primeira, a 10.12.70, abortada, a bordo do NRP «S. Gabriel» (*), e a segunda, a 30.12.70, no NM «Rita Maria», com escalas em Leixões, Funchal e S. Vicente de Cabo Verde, antes de chegar a Bissau, no dia 09.01.71. O final do Serviço Militar chegou em 01.01.73.


A Guiné



Ena!...era assim a Guiné? Não, não era sempre assim. Aliás, ainda continuará a ser, na generalidade, uma boa parte assim. Por isso as melhores estradas ainda continuarão a ser os seus rios e braços de mar.



Mas era também esta calma – no cais de Farim



Também estes fins de tarde, ainda em Farim…



E estes, fundeados na Ponta dos Escravos, no sul…


Vida das Companhias de Fuzileiros na Guiné

Integravam o dispositivo operacional da Marinha na Guiné duas Companhias de Fuzileiros (CF). Normalmente, alternavam a sua actividade entre:

1. Períodos de serviço interno, sedeados em Bissau com serviços de guarda atribuídos, fundamentalmente às INAB – Instalações Navais de Bissau e ao Edifício do Comando.




Em cima, vista aérea das Instalações Navais de Bissau - INAB e, em baixo, o edifício do Comando de Defesa Marítima da Guiné.



2. Períodos de serviço externo, com um pelotão da Companhia em Ganturé, comandado por um oficial, que era responsável pelos serviços de guarda da Base, podendo eventualmente apoiar operações dos Destacamentos, com uma secção de morteiros e 3 oficiais em Bissau, destacados para os combóios navais a Farim, Bissum, Catió e Bedanda. O oficial Imediato da Companhia também participava nos combóios.

A Companhia de Fuzileiros, durante este período, prestava ainda serviços de escolta, ao nível de esquadra, em fiscalização ou reforço na escolta de batelões, em zonas de menor perigo, especialmente no rio Geba, nas proximidades de Bissau.

E é nos períodos de serviço externo que se encaixam as LDM na vida dos Oficiais Fuzileiros. Especialmente adaptadas às exigências da guerra na Guiné, suficientemente versáteis, podiam executar tarefas de fiscalização e patrulha no rio Cacheu durante cerca de um mês.

Ali davam apoio a embarques e desembarques dos Destacamentos de Fuzileiros nos rios, e não só. Escoltavam combóios e ainda transportavam militares e mercadorias a aquartelamentos do Exército que, neste contexto, quer pela sua localização quer pelas condições de acesso, inviabilizavam o recurso aos batelões. Era frequente, sobretudo nos combóios a Bissum e a Catió, dar boleia a elementos da população.


Breve descritivo de uma LDM – Lancha de Desembarque Média

Haverá algum militar que tenha estado na Guiné que não saiba o que é uma LDM – Lancha de Desembarque Média?



A LDM 302 navegando no Cacheu, junto ao tarrafo da margem. A – Poço(resguardado com chapa balística); B – Peça Oerlinkon; C – Tarrafo; D – Casa do leme; E – Bote de borracha; F – Porta de abater; G – WC.

Bem, são pequenas unidades navais que, em vez de proa têm uma “porta que rebate”, para permitir cargas e descargas de pessoas e mercadorias com a LDM “abicada” em terra. A zona das cargas, “o poço” , tem duas metralhadoras MG42, montadas uma em cada bordo, a vante.

No convés e frente à cabina, estava montada num reparo circular uma metralhadora anti-aérea Oerlikon de 20 mm e, mais à frente, por cima da cobertura do poço, havia um bote pneumático Zebro II. Junto à cabine de navegação e comando, ou melhor, casa do leme e comando das máquinas, havia ainda uma mesa para as refeições, justamente colocada frente à janela.

A casa de banho (WC), com esse nome (?), era simplesmente inexistente. Não passava de um simulacro - uma caixa metálica aberta - que permitia as necessidades básicas de forma simplificada.

A guarnição era constituída pelo Patrão, um Cabo de Manobra, um Telegrafista, 2 Artilheiros e 2 Fogueiros. Havia um permanente e grande companheirismo entre toda a guarnição que se alargava, durante a realização dos combóios, à escolta de Fuzileiros.


No Cacheu



Na imagem de cima, a caminho de Bissum, no trajecto entre a passagem de S. Vicente e a Foz do rio Armada, onde as coisas podiam realmente complicar-se. Notória, ainda, a descontracção do pessoal. Pode distinguir-se perfeitamente a capacidade de fogo da LDM com o armamento visível: a Oerlikon, com o cano ainda na vertical, a “basooka” em cima da cabina e uma das MG 42.



Nesta imagem de pormenor a LDM mantem-se ainda amarrada ao tarrafo, esperando a vinda da maré e a hora estipulada no "ORDMOVE".


"ORDMOVE"

Nas imagens seguintes, é possível verificar que todas as informações necessárias para a execução de todos os trabalhos eram definidas pelo "ORDMOVE":

Constituição do combóio e lanchas de apoio;
Comando, pessoal da Companhia de Fuzileiros e local de posse do comando;
Batelões, carga e locais de destino;
Articulação com forças de apoio;
Transporte de pessoal e cuidados a observar;













Nota
:

Nos combóios a Farim, ao oficial era poupada a viagem em LDM a partir de Bissau. Era transportado até Vila Cacheu, na avioneta da Marinha, um Auster Rallye, azul claro.


Cada operação tinha sempre como epílogo o respectivo relatório. Mas quem quiser escrever, com verdade, a história para a qual este relato pode ser uma fraca contribuição, não se poderá cingir aos arquivos. A verdadeira história está com as pessoas. É preciso ouvi-las contar o que lhes foi vedado escrever nos documentos criados para o efeito. Porquê?

Conveniências…

Alguns dos comboios do Cacheu até foram bem divertidos. Por exemplo, o "ORDMOVE" de um deles previa, e bem, que a carga a transportar para Bissum fosse levada até S.Vicente, ao contrário do que sempre acontecia, recorrendo a combóio de viaturas militares. Em S. Vicente as lanchas abicaram e começaram a receber a carga das "GMC" e das "BERLIET".

Previam-se quatro subidas do rio Armada (de que ninguém gostava), só que, às tantas, entre as indicações que os meus olhos liam e a carga que faltava, com um bocadito de esforço e com a água a bordejar, por cima, a linha de água inscrita nos flutuadores (depósitos de água) das LDM, consultados os Patrões, arriscámos fazer uma única viagem.




Padrão aos Descobrimentos em Vila Cacheu - "Por mares nunca dantes navegados..."

Dois meses depois fui chamado ao Estado-Maior. O oficial que fazia o controlo das operações, pelo menos destas, questionou-me sobre o facto de não ter feito as quatro viagens da praxe. Que não, tinha feito apenas uma.

“Porquê, perguntei?”

– “Então o Exército tem razão…

Caíu alguma carga ao rio?”

– “Não, nem uma única caixinha…”

O que aconteceu então? Ah!…, o responsável pela carga tinha traficado, entre Bissau e S.Vicente, quase todo o material que era suposto transportarmos para Bissum. Tinha-se desculpado com o oficial do combóio. A maior parte da carga tinha caído ao rio. Teve azar…

Mas no combóio seguinte as coisas foram ainda mais engraçadas. Como a subida do rio Armada, pelo menos naquela fase, tinha ganho algum sossêgo, resolveram (quem seria?) que as LDM escoltariam os próprios batelões até Bissum.

Chegada a hora da partida recusaram-se a avançar. “Que não entravam no Armada.” Seguiu-se uma troca longa de mensagens com Bissau seguidas de sessões de persuasão dos patrões dos batelões. “Que não, que não saíam dali.”




Ganturé - Em cima, um Land-Rover e a Messe e, em baixo, um abrigo. Hoje, tudo arrasado"



A quarta mensagem de Bissau dizia, preto no branco, que decidisse por mim. Foi o que quis ouvir, ler, sei lá... Lanchas a juzante de todos os batelões, expectantes, porque as lanchas aparentemente iam embora, meia volta, Oerlikons apontadas às ditas embarcações e, braço estendido, à boa moda Bonapartista, digo eu, "Todos à minha frente..." E foi um ver se te avias pelo rio Armada acima.

Mas agora,... talvez logo a seguir,... é claro que foi um risco que se correu escusadamente. Era já noite escura quando deixámos Bissum, guiados pela lua e pelas margens. Só que desta vez não se perdeu carga alguma...




Elísio Pires Carmona
2TEN FZ RN
15.º CFORN

(continua)

Fontes:
Texto compilado a partir de artigo e imagens cedidos pelo 2TEN FZ RN Elísio Pires Carmona, 15.º CFORN; restantes imagens de arquivo do autor cedidas pela Revista da Armada, Arquivo da Marinha, CAlm Joel Pascoal e CFR Abel de Melo e Sousa.


mls