11 junho 2020

São Turras, Sr. Tenente, são Turras!...




Rio Cacheu ao pôr-do-sol (Abel Melo e Sousa -CFR Ref)


Havia já dois dias que as Lanchas fundeavam a meio do rio a jusante da Passagem de S. Vicente, concluído o Comboio de Farim. Aguardavam os batelões para Bissun, que chegavam e amarravam ao Tarrafo à espera da trasfega da carga para as LDM.

Dois dias sem mais preocupações que as que decorriam das tarefas diárias agendadas, as escutas do telegrafista, os banhos divertidos da marujada, a confecção das refeições e os momentos passados com as letras dirigidas às namoradas.

O dia, esse, esvaía-se com os últimos fulgores do sol a perderem-se por entre os galhos do arvoredo e as risadas do pessoal, as LDM à espera do momento para se abrigarem, furtivamente, já a coberto da noite, nos “amarradouros” conhecidos e reconhecidos da margem direita, a montante da Passagem de S. Vicente. E tudo sossegava.

À medida que a noite avançava sobravam as palmadas nos moscos – nome carinhoso com que se designavam os mosquitos – e, à medida que a noite avançava, os sussurros do sentinela e dos mais resistentes ao sono e aos sonhos, como que conversando com a gritaria da passarada noctívaga.

Nada faria crer que aquela noite iria ser diferente. O Tenente acendera atempadamente a malcheirosa espira verde “anti-mosquitagem” em cima do rádio e enchera os canudos do colchão pneumático que fazia de cama no chão da cabine de pilotagem.

Imaginava que, sendo ainda periquito, sempre era melhor respirar o ar impregnado dos cheiros oleosos do que o ar puro ao relento no tombadilho da lancha. Estava mais protegido…

Mas não era verdade, que ainda não tinha pregado olho quando, lá pelas 3 horas da madrugada, uma vozearia ensurdecedora lhe pôs no coração um sufoco e nas pernas um terramoto. Era a voz do Xixas a mais exaltada, estaria no seu turno de guarda, a gritar “são turras, são turras, trás a MG, vão já com uma rajada!!!”…

O Tenente, entretanto, perguntava a si próprio “o que é que se passa ali?”, todo num abanico. Recuperado o sangue frio concordou, ainda consigo próprio “porra!, eu sou o comandante, tenho de ir ver do que se trata”, sempre com a vozearia a crescer, a crescer por entre rajadas à espera.




LDM abicada no porto de Bissum - Rio Armada
Abastecimento e transporte de militares e populações


Fez das tripas coração e subiu ao convés com um enérgico:

– O que é que se passa aqui?

Respondeu o Xixas, já com uma G3 quase engatilhada:

– São turras, Sr Tenente, são Turras, vão já numa rajada!

– Onde é que estão os Turras?

– Ali, na canoa.

Era verdade; encostada ao tanque da água de estibordo encontrava-se uma canoa com cinco homens, pretos, tão pretos como a noite, vergados, completamente vergados ao sabor da sua sorte, dobrados pela cintura sobre as suas pernas.

O Tenente avaliou a situação, ou não avaliou, mas ocorreu-lhe, a ele sim, numa rajada, acalmar os ânimos com uma ordem:

– Ninguém dispara nada. O comandante sou eu. Tudo o que se fizer só pode ser feito com minha autorização! E não faremos nada com jeito se não nos acalmarmos todos!

Toda a gente estremeceu, porque a resposta foi um longo silêncio de poucos segundos que soprou ao Tenente “estás a tomar o pulso aos acontecimentos” e, com isto, saltou para o tanque da água. Percorreu o comprimento da canoa espiolhando o seu interior.

Apenas cinco homens ajoujados, cobertos por um fraco pano da mesma cor, preta, que talvez os abrigasse da esbatida frescura da madrugada. Nada de armas, que fosse de seus vestígios,
nada de nada, apenas medo, porventura, e silêncio. Falou aos homens ainda do tanque da água, também flutuador, acha o Tenente:

–Podem ser turras, sim, podem ser turras, mas nada o denuncia, que na canoa apenas estas cinco pobres criaturas!

– Mas... são turras, Sr Tenente, são Turras!,… insistia o Xixas

– Podem ser, sim, mas não há evidências nenhumas.




Refeição partilhada a bordo duma Lancha de Desembarque Média

Silêncio. Novamente a resposta foi o silêncio. Então o Tenente, sentado nos calcanhares, à proa da canoa, atreveu-se a perguntar:

– Alguém fala português? Silêncio, silêncio quebrado pelo Xixas:

– São Turras, Sr. Tenente, são Turras!

Uma rajada...

O Tenente subiu ao tombadilho e falou

– Podem ser turras, sim, mas do que me estou a lembrar agora, neste momento, é da minha terra, lá longe, do outro lado; e das laranjeiras e das parreiras; e de amigos…

O silêncio, o silêncio tinha tomado definitivamente conta dos acontecimentos.

O Tenente voltou a saltar para o depósito da água, cada vez mais confiante, e novamente sentado nos calcanhares, perguntou

– De onde vêm vocês?

Aconteceu, então, inesperadamente, um:

– De Bissum…




2 LDM abicadas
Abastecimento de combustível e víveres


Soltado pelo homem sentado a meio da canoa, que se desdobrou, lentamente, talvez com o pressentimento de “já me lixei, já nos lixámos” e, por uns segundos que foram uma eternidade, em silêncio, permitiu que os olhares, dele e do Tenente, se fixassem. E voltou a dobrar-se sobre si. O Tenente, como que impulsionado por uma mola, de pé, atirou:

– Ah! Afinal sempre há alguém que fala português!... E vão para onde?

– Para Bula!, respondeu, dobrado, o mesmo homem…

Com calma e uma paz imensa, juntou-se aos seus homens, junto da Oerlikon, – que todos se tinham levantado, todos sem excepção –, e voltou a falar ao pessoal:

– Eu não vos dizia?! Estes homens vão à cidade como também eu, nas segundas-feiras. Um vai renovar o BI, aquele vai tirar uma certidão de nascimento, o terceiro vai à Praça, o…

Lembrou-se de que, com Spínola, tinha havido uma inflexão na política de aproximação às populações designada, oficialmente, por “A PSICO”. Toda a gente aproveitava e reduzia, às tantas, tudo à “PSICO” – olh’á Psico!…

E voltou a saltar para o tanque da água para, num gesto inesperado para todos, – ou talvez não –, com um toque no ombro do homem a vante, ordenar:

– Sigam, amigos, vão à vossa vida…

E ficou só o silêncio, um longo silêncio, a morrer nos olhos ao ritmo lento das remadas, a canoa a cruzar o Cacheu para a curva à esquerda, lá longe, no vagar de quem espera, a todo o instante, o troar de uma rajada.
Ah! Como eu gostaria de saber o que se terão dito ao mergulharem na imensidão da noite, sós, na companhia fagueira do seu rio…


Marinheiro E*
*O Marinheiro “E”, de todos já conhecido, é o Sócio Originário n.º 1542, Oficial FZ RN que integrou os efectivos da CF 11 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné nos anos 1971/1972.


Fontes:
Com a devida vénia, texto compilado a partir de artigo já publicado na Revista "O Desembarque" n.º 30 da Associação de Fuzileiros em http://www.associacaofuzileiros.pt/


mls

Sem comentários: