19 novembro 2018

Reserva Naval nos Fuzileiros


Pormenores adicionais de uma incompleta memória histórica



Escola de Fuzileiros - Porta de Armas e Parada


«Pensar o passado, compreender o presente, preparar o futuro...»

A temática «Fuzileiros» tem vindo a ser abordada com a frequência que lhe é devida institucionalmente pelo prestígio de que disfrutam, quer dentro da Marinha quer fora dela, amplamente justificado pela forma como se empenham e levam a cabo as complexas e diversificadas missões operacionais que lhes são cometidas ao serviço do País.

Sendo a Escola de Fuzileiros um estabelecimento de ensino com mais de meio século de existência, nesse já tão alargado percurso temporal, muitos foram os eventos que marcaram de forma significativa um caminho de valores, sendo que dever, honra, dignidade, amizade, camaradagem, solidariedade e entreajuda são atributos dos fuzileiros, ao serviço da cidadania em geral.



Sede da Associação de Fuzileiros


A Associação de Fuzileiros rege-se pela Lei e pelos seus Estatutos e Regulamentos, congregando em especial fuzileiros, oficiais, sargentos e praças nas situações de activo, reserva, reforma ou licenciamento de marinha, os seus familiares directos e outras pessoas que, voluntariamente, adiram aos princípios e aos valores plasmados naquele documento.

Tem também como missão e fins promover os laços e os contactos entre todos os sócios que sentem orgulho em integrar aquela Associação, por terem interiorizado, partilharem e defenderem o que já que constitui um traço genético herdado da Casa-Mãe, a Marinha.

O Corpo de Fuzileiros com o apoio da Associação de Fuzileiros, organiza anualmente o «Dia do Fuzileiro», evento destinado a reunir numa mesma data, na "Escola Mãe", todos quantos serviram e servem este Corpo de Tropas Especiais desde de 1961 até à actualidade.




Naturalmente que o universo de participantes foi consideravelmente alargado com o nascimento da Associação de Fuzileiros, fundada em 29 de Março de 1977 que, com as respectivas Delegações, Sócios, Familiares, Convidados e o apoio da Autarquia local, têm emprestado ao evento um impulso digno de registo.
Sendo um dos objectivos principais da Associação de Fuzileiros promover, permanentemente, o convívio entre antigas e novas gerações de Fuzileiros, tiveram a mais significativa expressão no percurso efectuado:

• Comemoração do «50.º Aniversário da Escola de Fuzileiros» levada a cabo em 3 de Junho de 2011 naquele prestigiado Estabelecimento de Ensino com a presença das mais altas individualidades da Marinha;

• Inauguração do «Monumento ao Fuzileiro, em 2 de Julho do mesmo ano, no Barreiro, com o apoio da autarquia local e a presença de altas individualidades da Marinha e do País. Ficou localizada na Praça dos Fuzileiros Navais, frente às instalações do Hipermercado Continente;



Monumento ao Fuzileiro

Com o apoio da Direcção da Associação de Fuzileiros, foram criadas diversas Delegações, alargando a área de influência e participação das populações, no âmbito de múltiplas actividades desportivas ou de convívio.

São disso exemplo as Delegações de Fuzileiros do Algarve, Beira Alta, Douro Litoral, Juromenha/Elvas, Polícia Marítima e ainda o Núcleo de Motociclistas da Associação de Fuzileiros e a Rádio “Filhos da Escola”.

Também uma obrigatória referência à empenhada participação da Associação de Fuzileiros na Unidade do Corpo de Cadetes do Mar Fuzileiros, à Divisão do Mar e das Actividades Lúdicas e Desportivas, culminando com a regular publicação da Revista da Associação, “O Desembarque”.

Merecedora de crítica seria a atitude de não referir o importante papel que a Associação de Fuzileiros representará no apelo à pesquisa, recolha, tratamento, conservação e divulgação adequada das memórias históricas e espólios da temática fuzileiros, fruto da participação efectiva de associados, por via do empenhamento pessoal, enquanto militares, nas missões em que terão estado integrados.

Terá ganho especial relevância num passado recente o período compreendido entre 1961 e 1975 da Guerra do Ultramar, em que as primeiras Unidades formadas na Escola de Fuzileiros a saber: Companhias de Fuzileiros Navais (CF), Destacamentos de Fuzileiros Especiais (DFE) e ainda Pelotões Independentes de Fuzileiros ou de Reforço tinham, quase invariavelmente, como destino os teatros de guerra de Angola, Moçambique, Guiné ou ainda pontualmente Cabo Verde.

Sem qualquer excepção para aquele período, Destacamentos e Companhias de Fuzileiros integraram sempre oficiais do quadro de Complemento da Reserva Naval.

Apenas à Institução Militar caberá ajuizar da competência, coragem, empenho, dedicação, abnegação com que cada militar terá desempenhado cada missão, atribuindo-lhe condecorações ou louvores, por vezes levadas a cabo com sacrifício da própria vida. Assim aconteceu e, ainda que no cumprimento dever, foram sempre demais, pela perda de vidas quase sempre em combate.

Como meu princípio habitual, eximir-me-ei a apreciações desse tipo, limitando-me a factos objectivos com suporte documental ou fontes que corroborem textos, relatos ou outro material.

Naturalmente que considero ter a liberdade de exprimir a minha própria opinião, sobretudo quando fundamentada pela participação pessoal em episódios ou vivências havidas, como oficial da Reserva Naval do 8.º CEORN*.

*Efectivamente o último com “E” de Especial já que a partir daquele curso passou a “F” de Formação, apenas por despacho administrativo, tida aquela denominação por mais conveniente, por quem de direito, claro! Como informação complementar, para que os próprios interessados fiquem com o mesmo conhecimento de que disponho, são os únicos cursos da Reserva Naval que dispõem de «Livros-Mestre» no Arquivo de Marinha. São consultáveis, apenas pelos próprios, depois de efectuarem e ser autorizado o respectivo pedido, de acordo com a Lei de Protecção de Dados.





LFG «Orion» com Destacamento de Fuzileiros Especiais a bordo

Durante dois anos, desempenhei na Guiné as funções de Oficial Imediato da LFG «Orion», integrado na guarnição que incluia um outro oficial, o Comandante, e ainda 4 Sargentos e 22 Praças.

Quer pelas características específicas daquele teatro de guerra, quer por algumas das vivências havidas, habituei-me a considerar aquela unidade naval como um todo, talvez um aprendizado da mais-valia colectiva em que a individualidade cedia prioridade ao conjunto. Como nos fuzileiros e com os fuzileiros com quem navegámos centenas de horas ao longo de dois anos de comissão.

Nas lanchas, fosse qual fosse o tipo, as guarnições não estavam preparadas para o confronto armado de proximidade física pelo que, em locais de risco elevado e perigosidade acrescida, era bem vinda e reconfortante a presença de fuzileiros a bordo.

Comandante-Chefe, Comandante de Defesa Marítima da Guiné, Fuzileiros, Exército, Comandos, Páraquedistas, Grupos de Combate, Pelotões, Feridos, População Civil e até agentes da PIDE/DGS ali fizeram horas de navegação.

Os Destacamentos de Fuzileiros Especiais (DFE) eram presença especialmente frequente, determinante nas operações planeadas - golpes de mão ou emboscadas - montadas ao inimigo nas margens ou proximidades daquele enorme emaranhado aquático, quase invariavelmente com o apoio das tão insubstituíveis como abnegadas LDM - Lanchas de Desembarque Médias e LDP - Lanchas de Desembarque Pequenas, alguns botes por perto, empilhados em cima do rufo da casa das máquinas, na cobertura do poço daquelas lanchas ou ainda rebocados.

Teve aquela classe de oficiais da Reserva Naval teve um papel determinante nos Fuzileiros? Indiscutivelmente que sim e, sem que deixem de ser considerados como apenas uma parte do Comando de um alargado conjunto de militares enquadrando Sargentos e Praças, é possível remeter para números reais o que representaram em Destacamentos, Companhias e Pelotões de Fuzileiros os militares da Reserva Naval.

Repetindo e enfatizando um excerto de uma publicação já por mim efectuada em Setembro de 2008 sobre a participação dos Fuzileiros nas frentes de Angola, Moçambique, Guiné e também Cabo Verde:

Reserva Naval - Os Números

“...Num total de 63 Destacamentos de Fuzileiros Especiais distribuídos por aqueles teatros operacionais, da totalidade de 139 oficiais neles integrados, 82 eram Oficiais RN (56%) e, mesmo dos 57 dos Quadros Permanentes que comandaram os DFE, mais de uma dezena tinham desempenhado missões anteriores como oficiais da Reserva Naval e vieram a optar pelo ingresso nos QP.

Maior acuidade ainda no tocante às Companhias de Fuzileiros em que, das 45 Unidades que nos mesmos teatros operacionais estacionaram, considerando incluídos os Pelotões Independentes e de Reforço (também em Cabo Verde), 217 dos 328 Oficiais (66%) que integraram o Comando das Companhias pertenciam à Reserva Naval. De entre estes últimos, 11 pertenciam à Classe de Médicos Navais e alguns Comandantes daquelas unidades eram igualmente oriundos da Reserva Naval.
Ainda numa outra perspectiva, em finais daquele ano de 1974, do total de Oficiais que prestavam serviço na Armada, 24% pertenciam à Reserva Naval e, considerando apenas os Oficiais subalternos, essa percentagem aumentava para 40%...”




Anuário da Reserva Naval 1958-1975 e Anuário da Reserva Naval 1976-1992

Estes elementos, ainda poderiam ser actualizados com pequenos ajustamentos já que, por defeito, nas fontes originais de consulta utilizadas, não estão mencionados alguns oficiais da Reserva Naval que, apenas mais tarde, foram mobilizados depois da constituição das Unidades, como rendições individuais e não tendo sido efectuado o respectivo registo. São gralhas normais em registos de pesquisa em que o rigor absoluto é inatingível.

Considerando apenas a totalidade da classe de Fuzileiros em duas gerações distintas de cursos da Reserva Naval:

• De 1958 a 1975, decorrido um período de 16 anos, já que em 1975 não se realizou qualquer curso da Reserva Naval, foram integrados em 25 cursos realizados, 1.712 cadetes, dos quais 465 (27.16%) pertenceram à classe de Fuzileiros.

• Para idêntico número de anos, de 1976 a 1992, em 78 cursos realizados, sendo que 41 realizados na Escola Naval e 37 na Escola de Fuzileiros, integraram a totalidade dos cursos, em ambos os estabelecimentos de ensino, 1.885 cadetes, dos quais 666 (35.33%) pertenceram à classe de Fuzileiros.

Resumo esclarecedor para o crescimento relativo da classe de Fuzileiros, mas suscitando interessantes questões no entendimento da razão para um aumento de 10% na totalidade de oficiais da Reserva Naval admitidos em igual número de anos.

Questões pertinentes partindo de conhecidas premissas quer no que concerne à redução do espaço geográfico nacional, confinado ao Continente e Ilhas, quer à retracção do dispositivo naval havido, ambos como resultado do final da Guerra do Ultramar.




O 1.º Oficial Fuzileiro Especial da Reserva Naval




2TEN FZE RN João Pedro Gião Toscano Rico

O 4.º CEORN foi o primeiro curso da Reserva Naval que incluiu também Fuzileiros. Em 6 de Outubro de 1961, foram incorporados 9 cadetes daquela Classe num curso que incluia um total de 44 cadetes.

Em 1 de Maio de 1962 foram promovidos a Aspirantes a Oficial, com a particularidade de ter havido um elemento da classe de Marinha que concorreu ao curso de Fuzileiro Especial (FZE), vindo a ser aprovado.

O 2TEN FZE RN João Pedro Gião Toscano Rico, foi o primeiro oficial da Reserva Naval que, sendo originalmente da classe de Marinha, ficou habilitado com o curso de Fuzileiro Especial depois de ter concorrido e sido dado como “Apto” no final do mesmo.

Foi destacado para Angola e integrado como quarto oficial no Destacamento de Fuzileiros nº 1, comandado pelo então 1TEN FZE Augusto Henrique Coelho Metzner.

Faz-se notar que, por esse facto e embora sem expressão especial, por esse facto terá sido aumentado um elemento à classe de Fuzileiros e reduzido o equivalente na classe de Marinha.




A Morte em Combate em 2 de Junho de 1973




STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira

Pertenceu ainda à Reserva Naval o único oficial da Marinha Portuguesa morto em combate durante a Guerra do Ultramar, ao serviço da Companhia de Fuzileiros n.º 1, em Angola.

Promovido a Aspirante FZ RN em 13 de Outubro de 1971, frequentou o curso de Fuzileiro e foi destacado para Angola, onde chegou a 18 de Setembro do ano seguinte, com o posto de STEN, assumindo o comando do 3.º Pelotão da Companhia N.º 1 de Fuzileiros.

No dia 2 de Junho de 1973, pelas oito horas da manhã, integrado numa coluna de viaturas do Destacamento do Zambeze, em missão de serviço à Lumbala, foi alvo de uma emboscada inimiga. Dessa emboscada, ocorrida na Picada entre Lumbala e Chilombo, a cerca de dez quilómetros desta última localidade, resultou a morte de António Piteira.




Em cima, vista aérea do aquartelamento do Chilombo e, em baixo,
cabina da viatura emboscada, sendo visíveis os efeitos dos impates dos tiros e,
do lado esquerdo, os danos provocados pelo armamento inimigo




Na mesma emboscada, morreram, igualmente em combate os seguintes Fuzileiros:

Mar FZE 771/68 António Cardoso Saraiva, DFE 10;
Mar FZE 717/70 João Gonçalves Nunes Pereira, DFE 10;

Ficou ainda ferido o Mar FZE 1214/70 Henrique Manuel Pais Fernandes, DFE 10 e morreu ainda um civil que seguia na cabina da viatura, o Sr. Medeiros;

No dia 18 de Dezembro de 2009 teve lugar, na Escola de Fuzileiros, em Vale de Zebro, uma singela mas significativa homenagem ao camarada da Reserva Naval António Bernardino Apolónio Piteira, pertencente ao 18.º CFORN, que morreu em combate em 2 de Junho de 1973, no Leste de Angola, Chilombo, vítima de uma emboscada inimiga, quando comandava uma coluna logística de viaturas no trajecto Chilombo – Lumbala.




Da esquerda para a direita, os comandantes Oliveira Monteiro (CCF), José Ruivo (AFZ),
Joaquim Moreira (AORN) e Ferreira de Campos (EF)


A homenagem consistiu na atribuição do nome do STEN FZ RN Apolónio Piteira à rua que liga a Parada da Escola de Fuzileiros - à qual foi recentemente atribuído o nome do Almirante Roboredo e Silva - à Messe de Oficiais.

Presidida pelo então 2.º Comandante do Corpo de Fuzileiros, CMG FZ Oliveira Monteiro, em representação do Comandante do Corpo de Fuzileiros, contou também com a presença do Comandante da Escola de Fuzileiros, CMG FZ Ferreira de Campos, com o Presidente da Direcção da AORN e várias outras Entidades e Camaradas da CF n.º 1 que se quiseram associar.



No dia 20 de Setembro de 2014, em sessão solene na Câmara Municipal de Arraiolos, com a presença da Presidente, Dr.ª Sílvia Pinto, teve lugar uma expressiva homenagem ao STEN RN António Piteira que enalteceu a iniciativa tomada dando a conhecer a representação que iria ter no Centro Interpretativo do Tapete de Arraiolos (CITA) em exposição alusiva ao tema.




Foi oferecida à autarquia o espólio de Marinha do camarada António Piteira em expositor apropriado com o boné, cordão de fuzileiro, galões de subtenente e fotografia em base cerâmica.
Seguiu-se uma breve e significativa cerimónia, com descerramento de uma lápide junto à placa da rua em seu nome, sita na Ilha do Castelo, com população local que fez questão de se associar ao evento.

Daqui saudamos todos os Fuzileiros, independentemente de posto, idade e situação, recordando especialmente os já ausentes dos nossos convívios.

Nunca serão esquecidos!




Manuel Lema Santos
8.º CEORN
Sócio n.º 2189 da AFZ


Nota: Este artigo foi publicado no último número da revista da Associação de Fuzileiros, "O Desembarque" n.º 31, Novembro 2018.

Fontes:
Texto e fotos de arquivo do autor; Anuário da Reserva Naval, 1958-1975, Comandantes Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, 1992; Anuário da Reserva Naval, 1976-1992, Manuel Lema Santos, 2011, Edição AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval; Fuzileiros, Factos e Feitos na Guerra de África, 1961/1974 - Guiné, Luís Sanches de Baêna, 2006; Foto do topo cedida pelo Comando da Escola de Fuzileiros;


mls

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