09 novembro 2018

O DFE 12 esteve lá, em Cumbamory - Operações «Catanada» e «Cocha»


Guiné 1970/71 - A Solidariedade nas Matas, no Sofrimento e na Amizade

Breve Nota sobre o DFE N.º 12 - Operação “Chave”




2TEN FZE RN Serafim Lobato (DFE 12): Operação “Chave”


O Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 12 foi para a Guiné dividido em dois grupos. Em Janeiro seguiram três oficiais e os quadros subalternos – sargentos, cabos e marinheiros. Não havia grumetes, com curso, para completar o destacamento, na data indicada pelo Estado-Maior da Armada: uma unidade completa comportava 80 homens. Aqueles chegaram em finais de Março, juntamente com o 3.º Oficial, que ficou na Escola de Fuzileiros, para escolher os jovens que acabavam o curso de especiais.

No Território Operacional (TO) ao contrário dos anteriores destacamentos, não tiveram PTO – ou seja, um período de adaptação operacional que, normalmente, era enquadrado pela unidade que estivesse nos últimos meses de comissão na base de Ganturé, onde se encontravam, normalmente, três DFEs e um pelotão de apoio de uma companhia de fuzileiros.

Entraram, meia dúzia de dias depois da chegada, em acção. Num ritmo operacional alucinante. O seu “baptismo” de fogo deu-se, justamente, nos princípios de Abril, com a entrada na Base Central da Frente Norte do PAIGC, dentro do Senegal, Cumbamory, onde regressaram, uma semana depois, e capturaram mais de 10 toneladas de armamento.

Foi a única unidade da Marinha – diria, pelo que consegui investigar nos arquivos militares, de todas as Forças Armadas – a entrar e afastar, ainda que momentaneamente, a guerrilha do interior do seu principal “quartel operacional de retaguarda” naquela região. Cerca de dois meses depois, assaltaram outra grande base do PAIGC, em Sanou (Sanu em português) igualmente sediada no interior do Senegal, situada, mais ou menos, no meridiano do antigo quartel português de Barro. Seguiram-se outros combates e outros locais de passagem.

Pela sua experiência, verificaram, ao longo dos meses, que os Fuzileiros Especiais – e outras tropas especiais – estavam a ser mal enquadrados na sua acção militar no TO. Opinaram, quando lhe foi dado consentimento para tal, sobre tal facto. As autoridades superiores consideraram tal opinião como se tratasse de um “crime de lesa-majestade”.

Foram ostracizados superiormente, mas este DFE 12 continuou, disciplinadamente e com todo o espírito de corpo, a actuar com a mesma rectidão. Aliás, na adversidade, ganhou um sentido de solidariedade e de camaradagem que se perpetua até hoje. Tiveram sempre a noção real do seu valor.


Serafim Lobato
Sócio Originário n.º 1792
4.º Oficial do DFE 12





O DFE 12 esteve lá, em Cumbamori - Operações «Catanada» e «Cocha»




Carta de navegação usada pelo DFE 12

Numa época em que já ninguém pensava ir à tropa porque a tropa já não pensava em ninguém, a Marinha incorporou-me nas suas fileiras. Fui, durante três anos, oficial da Reserva Naval, classe de Técnicos-Especialistas. Não obstante, chapinhei na Pista de Lodo da Escola de Fuzileiros e fui aprendendo muito, então como agora, sobre a classe de Fuzileiros.

Colocado nas unidades a que pertenci, ouvia os mais velhos, todos do Quadro Permanente, a maioria da classe de Marinha, falar do DFE 12, que definiam como um implacável cilindro de guerra que tudo esmagava por onde passava. Não falavam, porém, de factos concretos nem de concretas operações. Apenas deixavam no ar uma aura mítica de arrojo, audácia e glória.

Vou, pois, abordar duas acções extra-territoriais, verdadeiras operações especiais realizadas em país estrangeiro, tendentes à detecção e destruição de uma hipotética base militar a partir da qual o PAIGC operaria.

Tratava-se da Base de Cumbamory, no Senegal, cuja importância se revelou crescente no decurso da guerra da Guiné, o teatro de operações ultramarino que ficou para a História Militar com a designação de «Vietname negro». Pelo menos desde 1967 que os altos comandos militares portugueses tinham ideia da existência desta Base inimiga. Mas não é certo que se soubesse da sua exacta localização. Estaria ela sobre a linha da fronteira norte da Guiné ou no interior do Senegal? De uma coisa se tinha a certeza: era por essa Base que o PAIGC infiltrava na Guiné grande parte do seu pessoal e do seu equipamento. Daí a sua importância.

Há registo de que no dia 11 de Dezembro de 1967, uma força pertencente ao Batalhão de Caçadores n.º 1887, constituída por 170 soldados, tentou assaltar a Base, mas não lhe alcançou o cerne. Causou algumas baixas ao IN, capturou escasso material de escassa importância e sofreu, infelizmente, bastantes baixas, entre as quais quatro mortos cujos cadáveres não recuperou.

Foi a Operação "Chibata", que se considerou que teve relativo êxito, mas que não correu bem. O grupo de combate “Os Roncos”, que integrava a força, foi louvado a justo título. Foi esta a primeira tentativa de assalto a Cumbamory de que há nota. Como se verificou mais tarde por acção do DFE 12, a Base de Cumbamory ficava no interior do Senegal a cerca de 7 km da fronteira norte da Guiné, tinha uma área superior a quatro campos de futebol e era composta por duas zonas longitudinalmente bem definidas: um bosque de palmeiras, a Oeste, e uma mata aberta, a Leste.

O DFE 12, de início, apenas tinha 35 ou 40 Fuzileiros Especiais nas margens do Cacheu, baseados em Ganturé. Eram 35 ou 40 veteranos já curtidos pelo fragor do combate que tinham chegado ao largo da ponta Caió, vindos de Lisboa, a 31 de Janeiro de 1970, e que atendiam pela designação de “Os Jacarés”.




Heli foge de artilharia IN

Alguns cumpririam a sua terceira comissão de serviço. A Base de Ganturé, situada 2 km a Sul do Quartel de Bigene, pertencia à jurisdição do Comando Operacional 3 (COP 3), um comando regional operacional encabeçado pelo Capitão-tenente US/FZE Alpoim Calvão, cuja sede fora instalada naquele Quartel. A jurisdição do COP 3 incluía unidades do Exército e estendia-se de Barro até Brufa.

Mas um DFE era constituído por 80 homens, pelo que, aos velhos Jacarés, comandados pelo 1.º Tenente FZE RN Mendes Fernandes, haveriam de se juntar, dois meses depois, 40 ou 45 jovens Grumetes FZE recém-formados pela Escola de Fuzileiros. Enquanto aguardavam pelas crias, “Os Jacarés” participavam em missões de combate e de patrulha integrados noutros Destacamentos também baseados em Ganturé.

Em Março, todavia, agiram sozinhos em patrulha de reconhecimento até à fronteira do Senegal e capturaram um soldado do PAIGC, que lhes forneceu informações importantes para as perigosíssimas operações que muito em breve, mal eles sabiam, se avizinhavam.

É que, entretanto, O COP 3 decidiu atacar a Base de Cumbamory, a principal base militar do PAIGC no Norte, e contou, para o efeito, com o DFE 12. Delineava-se, então, a Operação "Catanada". As jovens e tenras crias, embora bem preparadas técnica, emocional e fisicamente, haviam chegado da Escola apenas no dia 1 de Abril de 1970.

Como era habitual, seriam adaptadas ao Teatro de Operações mediante a chamada Preparação Técnica Operacional (PTO), com uma duração normal de dois meses, durante os quais realizariam pequenas operações com fuzileiros experimentados para se familiarizarem com o IN, com o pântano, o tarrafo e o clima.

Não houve tempo, porém, para tanto, posto que a Operação "Catanada" estava em marcha. Sem PTO, sem apoio aéreo e sem apoio de fogos próximo, o juvenil DFE 12 zarpou rumo a Bigene e, daí, até ao Senegal, na madrugada de 3 de Abril de 1970. Oficiais doutras unidades baseadas em Ganturé arrepiaram-se com a sorte do DFE 12, que seguia em direcção à «boca do lobo».

As informações militares adiantavam que a Base de Cumbamory estaria guarnecida por 150 soldados. O DFE 12, progredindo pelo interior do Senegal, chegou ao Norte de Cumbamory ao alvorecer e aproximou-se do local que denotava ser o da Base. Nessa altura, Mendes Fernandes deu instruções para que se montasse um perímetro defensivo e enviou patrulhas de reconhecimento, que tomaram rumos diferentes, a fim de verificarem se o DFE 12 tinha realmente localizado a Base. Uma dessas patrulhas detectou-a ao cabo de 500m de evolução.

Mas detectou também duas crianças junto de uma fogueira, as quais, assustadas, fugiram. O chefe da patrulha correu para tentar apanhá-las à mão quando encarou com dois soldados envergando os uniformes verde-oliva do PAIGC. Eram sentinelas. Sem hesitar, alvejou-os a uma distância de cerca de 3,5 m, no que foi seguido pelo apontador da metralhadora MG42. Uma das sentinelas morreu ali mesmo e a outra, gravemente ferida, foi levada pelo chefe da patrulha, num gesto nobre de humanidade, para junto do Destacamento.

Nisto, eclodiu imediatamente uma nutrida e violenta troca de fogo entre o PAIGC e o DFE 12, que perdurou por várias horas. Estava muito calor e havia muita humidade. O recontro, violentíssimo, evoluiu quase corpo-a-corpo, ardiam cubatas, ardiam árvores, ardia vegetação. Até que, por volta do meio-dia, o PAIGC inexplicavelmente cessou fogo.

O IN retirou-se. O jovem DFE 12 não teve baixas, apenas dois feridos ligeiros. O IN, como refere uma notícia C2 da Companhia de Caçadores 3, sofreu 16 mortos e 18 feridos, exactamente como consta do Resumo de Operações e Acções Realizadas da Repartição de Operações do Quartel-General do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné.




Em cima, pessoal carregando armamento apreendido e, em baixo, pessoal do DFE 12 escavando paiol



Aquela retirada do IN foi, anos depois, explicada pelo próprio Presidente Luís Cabral na sua obra Crónica da Libertação: o PAIGC resistira com tamanha ferocidade, porque decorria na Base uma reunião dos comandantes e comissários políticos da Frente Norte e doutras zonas, entre os quais estava o próprio Presidente Luís Cabral. Delineavam uma nova forma de comando, que veio a traduzir-se em Corpo de Comando.

O PAIGC, nas circunstâncias, bateu-se até onde pôde para proteger as suas cúpulas político-militares, que escaparam na retirada. O DFE 12, sem combate, regressou incólume a Bigene ao anoitecer desse dia 3 de Abril de 1970.

Mas haveria de tornar à Base de Cumbamory. Com efeito, informado de que a Base fora reconstruída, o COP 3 enviou novamente o DFE 12 ao assalto a partir de Bigene, o qual ocorreu no dia 12 de Abril de 1970, pelas 05:25. Era o início da Operação "Cocha".

Ingressando na Base pelo Sul, o DFE 12 eliminou as sentinelas mediante o emprego de ALG e o primeiro grupo de assalto avançou pela bolanha, passando de fila a linha quando o IN iniciou os disparos. Era, contudo, demasiado tarde para este: o grupo entrou na Base, surpreendendo vários elementos IN nos seus próprios abrigos. Uns fugiram, outros foram mortos, não tendo havido possibilidade de fazer prisioneiros.

Conquistada a Base e montando o perímetro, o DFE 12 passou a ocupar as próprias posições IN, colocando-se em situação privilegiada de defesa. A vanguarda, porém, havia-se separado da rectaguarda do Destacamento. Entretanto, o Marinheiro Galante Guerra, refazendo a ligação, veio anunciar ao 2.º Tenente FZE RN Serafim Lobato, 4.º Oficial da Unidade que tinham encontrado armas.

Serafim Lobato, chegado ao local indicado por Galante Guerra, viu, com espanto, armamento diverso de diversos modelos, tudo material de fabrico soviético e doutros países do Pacto de Varsóvia e até da China, muito mais sofisticado do que o armamento usado pelas forças portuguesas.

Descobriram-se seguidamente vários outros depósitos de armas e munições, todos camuflados no sub-solo. Chamados meios aéreos via rádio, “Os Jacarés” começaram a carregar os helicópteros com os achados. Nessa altura, o PAIGC carregou com violenta energia tentando recuperar a Base. O fogo IN era cerrado e impetuoso. Os helicópteros que recolhiam o armamento levantaram voo diversas vezes para não serem atingidos pela artilharia IN.

Ao tentar recuperar a Base, o PAIGC encontrou, porém, o DFE 12 firmemente posicionado e foi sendo repelido. Quatro aviões dois Fiat G 91 e dois Harvard T6 foram chamados a prestar apoio na defesa da Base, o que fizeram em parelhas com várias passagens rasantes intervaladas por cerca de 15 minutos, accionando as suas metralhadoras, principalmente os T6.

A troca de fogo entre o PAIGC e o DFE 12 mantinha-se cerrada e constante. O IN manteve a produção de fogo até ao meio da tarde. As forças em contenda estavam tão próximas uma da outra que o PAIGC, em desespero, tentou o corpo-a-corpo. “Os Jacarés” prepararam-se para a luta, colocando os sabres nas armas. O anoitecer aproximava-se, pelo que o Destacamento fez explodir tudo o que tinha à mão.

O combate durou 11 horas. O DFE 12 apreendeu 10 toneladas de armas ao IN, que foram expostas em Bigene. O armamento que restava foi maioritariamente destruído pelo bombardeamento dos Fiat, que se seguiu à saída de “Os Jacarés” rumo a Bigene, onde chegaram pela noite dentro.




Início de exposição de armamento no Quartel do Exército em Bigene

No decurso da guerra da Guiné mais nenhuma outra força portuguesa conseguiu entrar na Base de Cumbamory e ocupá-la, ainda que a espaços, e muito menos logrou apreender tamanha quantidade de armamento nesta Base IN.

O DFE 12 também não teve baixas nesta operação, apenas um ferido ligeiro. O PAIGC, como se relata no Resumo de Operações acima citado, sofreu vários mortos e feridos não quantificados, para além da apreensão das 10 toneladas de armamento. Eram apenas 35 ou 40 Jacarés nas margens do Cacheu, a que se juntaram jovens crias recém-saídas do ovo escolar, sem o adequado desmame que a PTO proporcionaria. Os jovens Jacarés desceram, num ápice, do Céu ao Inferno sem passar pelo Purgatório.

O DFE 12 a Pátria honrou. Que a Pátria o contemple, independentemente das posições, perspectivas e até preconceitos que cada um tenha sobre a Guerra do Ultramar.


Gomes da Silva
Sócio n.º 2243


Notas da Redacção:
1 - Na foto da exposição do armamento, no Quartel do Exército, em Bigene, apenas se vê uma pequena parte do material de Guerra apreendido;
2 - Nesta exposição do armamento, a Praça que olha o fotógrafo é o Mar Telegrafista Ulisses Pereira Correia, o “Maxi Mine” que morrerá em combate com o IN, em 20 de Outubro de 1970, na estrada de Sambuiá, a cerca de 10 a 15 quilómetros de Cumbamory;
3 – O elemento preto que aparece na foto a tirar armamento do paiol, não é fuzileiro. Trata-se de um guia balanta de Bigene;
(Serafim Lobato)

4– Sabemos quem foi o protagonista, aliás, grande militar – que confirmámos por pesquisa complementar, de boa fonte – do nobre gesto de poupar a vida a uma das sentinelas. Por razões que desconhecemos, presume-se que em virtude da sua conhecida humildade, este exigiu não ser citado, embora em versão inicial deste artigo o tivesse sido, pelo que respeitámos a vontade do próprio e do autor do texto.
(Marques Pinto)


Fontes:
Texto e imagens compilados integralmente por cortesia da Direcção da Associação de Fuzileiros, revista "O Desembarque" n.º 17, publicada em 6 de Julho de 2013


mls

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