02 junho 2017

Angola, 2 de Junho 1973 - A Morte na Picada do Chilombo para Lumbala


Uma coluna auto, do Destacamento de Marinha do Zambeze, emboscada na picada de Chilombo para Lumbala.

Resultado: 4 mortos e 1 ferido grave.


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 26 de Novembro de 2009)




Em cima, vista aérea do aquartelamento do Chilombo, junto ao rio Zambeze e, em baixo, a perspectiva do aquartelamento, da margem oposta do rio




Em 2 de Junho de 1973, após a formatura de serviço, foram preparadas duas viaturas, uma Mercedes e um Unimog, para seguir para a Lumbala, com uma escolta de uma secção comandada por um sargento.




Em cima, um posto de observação guarnecido com metralhadora Oerlinkon, de 20 mm e,
em baixo, podem observar-se os tejadilhos das cabines das viaturas Mercedes retirados,
para minorar o efeito das minas.




Não tendo aquele percurso sido sujeito a qualquer emboscada inimiga desde o início da comissão da unidade, na escolta das colunas, era mantido o efectivo de uma secção com LGF e MG-42.

A regularidade da coluna tinha por objectivo levar e trazer o correio, de e para a unidade, aproveitando para o efeito um táxi aéreo fretado pela JATA que, todos os Sábados, escalava Lumbala.



Em cima, a Picada do Chilombo para Lumbala e, em baixo, a LDP 208 varada na margem do rio, junto ao aquartelamento, durante a estação seca. A lancha era utilizada para a realização de operações e reabastecimento logístico.



Em serviço, seguia também na viatura o STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira e era acompanhado pelo Sr. Medeiros, instrutor da Auto-Eunice do Luso que necessitava levar documentação para seguir para o Luso, referente aos elementos da unidade que pretendiam tirar as cartas de condução.

Como habitualmente, seguia também na coluna um moço de botica, com bolsa de primeiros socorros e um operador com um rádio RACCAL TR-28A, tendo a coluna deixado a unidade às 07:55.

A cerca de oito quilómetros e meio do aquartelamento, o Unimog imobilizou-se, devido a um furo. A viatura da frente, a Mercedes, devido à nuvem de poeira levantada pelos rodados, não se apercebeu do facto, tendo continuado isolada e, cerca de quilómetro a quilómetro e meio à frente, caiu numa emboscada.

Tinham decorrido escassos minutos desde imobilização do Unimog, e ainda o condutor tentava mudar o pneu quando, mais adiante, se ouviram rebentamentos e tiros. O sargento que seguia nesta viatura e que transportava consigo o rádio, contactou imediatamente o Chilombo, informando do sucedido enquanto eram feitos todos os esforços para concluir a mudança da roda e seguirem em socorro do pessoal da Mercedes.

A distância entre as viaturas, a ser percorrida a pé, ocasionaria grande demora e, por outro lado, deficiências no equipamento de elevação do Unimog, associado a grande nervosismo, não permitiu concluir nos minutos seguintes a operação com sucesso, enquanto passavam pelo veículo imobilizado os primeiros reforços, a caminho do local provável do ataque.

Esta coluna de reforço, integrando duas outras viaturas, comandada por um oficial, foi mandada sair cerca das 08:10, depois de serem ouvidos, para sul do aquartelamento, rebentamentos e disparos de armas com grande intensidade.

Mais tarde, colhidas informações dos sobreviventes da Mercedes atacada, foi possível reconstituir, aproximadamente, os acontecimentos ocorridos, entre a hora de saída do aquartelamento e a altura da emboscada e que a seguir se reproduzem.

Num local habilmente escolhido pelo inimigo, foram abertos abrigos em meia-lua dos dois lados da picada. Por detrás deles, uma extensa floresta possibilitava uma retirada segura e, à frente, uma enorme “chana” dificultava o abrigo do pessoal das viaturas.

As bermas da picada, na “zona da morte” foram armadilhadas com cargas de trotil – foram retirados 23 kgs. – a serem accionadas por detonadores eléctricos. Por motivos que se desconhecem, provavelmente retirada precipitada, os detonadores não foram accionados à distância, evitando uma verdadeira chacina.




Cabina da viatura emboscada, sendo visíveis os efeitos dos impates dos tiros e, do lado esquerdo, os danos provocados pelo armamento inimigo.

A viatura Mercedes, ao abrandar numa cova do piso, foi simultaneamente atingida na cabine e no motor, com uma munição de morteiro 60 mm e um projéctil de LGF de 37 mm. Logo nessa altura, previsivelmente, os três ocupantes da cabine, os STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira, Mar FZE 771/68 António Cardoso Saraiva e o Sr. Medeiros, terão sido mortalmente atingidos, uma vez que a cabina e toda a parte dianteira da viatura se reduziram a uma amálgama de ferros torcidos e chapas esventradas.

Os três elementos que seguiam na caixa, os Mar FZE 717/70 João Gonçalves Nunes Pereira, Mar FZE 1214/70 Henrique Manuel Pais Fernandes e o Mar FZE 451/70 Rogério Fernandes Martins, logo que a viatura foi atingida e resvalou para a berma direita, tentaram saltar para esse mesmo lado.

O Mar FZE 717/70 João Pereira foi mortalmente atingido na cabeça, tendo ficado prostrado, agonizante, junto à viatura. O Mar 1214/70 Henrique Fernandes, que transportava a MG-42, foi ferido numa perna e o Mar FZE FZE 451/70 Rogério Martins saltou da viatura e abrigou-se na berma. Narra este último que, ao saltar para o solo, as explosões de morteiro e LGF eram contínuas, intervaladas com rajadas de metralhadoras. Tentou aproximar-se do camarada Mar FZE 717/70 João Pereira que ainda dava alguns sinais de vida mas expirou pouco depois.

Narrou ainda que, em seguida, se aproximou do outro camarada ferido, o Mar FZE 1214/70 Henrique Fernandes, que sangrava abundantemente duma perna e já tinha largado a MG-42. Não vendo quaisquer sinais de vida no local e continuando o fogo cerrado do inimigo decidiu transportá-lo e afastou-se, ladeando sempre a berma da picada, a única vereda onde existia ainda capim alto permitindo uma razoável camuflagem.

Distanciaram-se assim do local da emboscada, na direcção do Chilombo, mostrando já o Mar FZE Henrique Fernandes grande dificuldade em andar. Atravessaram um rio e já no meio dos caniçais o Mar FZE Rogério Martins efectuou um garrote na perna do camarada ferido. Alcançaram entretanto a picada, na altura em que chegavam os primeiros socorros.

Referiu o oficial que seguia na viatura da frente da coluna de reforço e alcançou primeiro a Mercedes alvejada que o IN já tinha abandonado o local quando lá chegaram. Ordenou que um grupo seguisse no encalço dos atacantes, enquanto outro prestava os primeiros socorros e montava segurança no local.

O Mar FZE 717/70 João Pereira encontrava-se morto junto à Mercedes. O STEN FZ RN António Piteira e o condutor da viatura, Mar FZE 771/68 António Saraiva foram encontrados na “chana” a cerca de 50 metros do local. O Sr. Medeiros foi também encontrado perto da viatura. Os três militares encontravam-se sem fardamento, equipamento ou objectos pessoais e também não foram encontradas as armas, uma MG-42 e quatro G3’s.

Inicialmente, apenas foram mencionadas três armas G3’s. Só mais tarde se confirmou que, consequência de uma troca de última hora de condutores, a precipitação fez com que o primeiro deixasse ficar a arma na cabina tendo o condutor que substituiu levado também a sua arma pessoal.

O grupo que efectuou a perseguição encontrou três trilhos iniciais, muitas grades de cerveja espalhadas que, originalmente, tinham sido carregadas na Mercedes, no Chilombo e, bastante para o interior, na mata, garrafas vazias e dispersão de trilhos no sentido geral S/SE. Considerado inútil manter a perseguição nestas condições o grupo regressou, tendo nomadizado a área até cerca das 11:00, hora a que os fuzileiros foram rendidos no local por militares do Exército de Lumbala.

Os corpos das vítimas foram retirados para o Chilombo, onde ficaram em câmara ardente durante duas noites, até 4 de Junho, com guarda de honra. Na manhã desse dia, pelo capelão do BCAÇ 3847, foi celebrada missa de corpo presente já com as urnas fechadas e, ainda durante a manhã, seguiram em coluna auto para o Cazombo.




Porta de Armas do aquartelamento do Chilombo.

À saída do aquartelamento, foram prestadas honras militares por toda a guarnição da unidade, profundamente abalada com o sucedido, numa última homenagem aos camaradas falecidos e que, de maneira tão trágica, perderam a vida ao serviço da Marinha e da Pátria. A morte daqueles camaradas e a conivência da população, deixaram marcas profundas que dificilmente se apagarão da memória de quantos ali viveram ou prestaram serviço.

Mortos em combate:

– STEN FZ RN António Bernardino Apolónio Piteira, CF 1, do 18.º CFORN
– Mar FZE 771/68 António Cardoso Saraiva, DFE 10
– Mar FZE 717/70 João Gonçalves Nunes Pereira, DFE 10

Ferido em combate:

– Mar FZE 1214/70 Henrique Manuel Pais Fernandes, DFE 10


O tipo de acção havida, a sua cuidadosa bem como pormenorizada montagem e a suspeita envolvência da população suscitou dúvidas, com alguns considerandos pertinentes:

• Facto inédito a assinalar naquela manhã foi o não aparecimento de qualquer elemento da população a pedir boleia para a Lumbala.

• Ainda mais significativo e denunciador de que a população do Chilombo estaria a par da presença de elementos inimigos nas proximidades, ou talvez até da própria acção – atitude pouco consentânea com o comportamento habitual do MPLA - foi a circunstância de, logo pela manhã, não ter aparecido nenhuma criança para vir buscar pequeno-almoço, nem quaisquer elementos da população para jogarem no campo de futebol de salão o que, invariavelmente, acontecia todas as manhãs.

• Acresce ainda que, a população do Chilombo, ao amanhecer desse dia e antes da acção, não saíu do “Kimbo”, provavelmente antevendo prováveis represálias que receavam seguirem-se à emboscada inimiga. Esta atitude da população reflectia, inequivocamente, um estado de comprometimento para não dizer de conivência.

• A montagem do minucioso dispositivo da emboscada foi certamente iniciada na véspera, o que fez estranhar a passagem, sem incidentes e na tarde do dia anterior, no percurso Lumbala-Chilombo, de uma viatura Land-Rover, transportando o Administrador da Lumbala, sem qualquer escolta. Também no percurso Lumbala-Chilombo, passou um veículo de carga civil na noite anterior e outro na própria manhã da emboscada, com saída da Lumbala, pelas 07:00.


Fontes:
Relatório do Comandante do Destacamento de Marinha do Zambeze, 1TEN FZ Pedro Baptista Coelho; colaboração do CMG José António Ruivo - 21.º CFORN; fotos de arquivo pessoal do autor do blogue;

Dicionário:
CF - Companhia de Fuzileiros; DFE - Destacamento de Fuzileiros Especiais; LGF - Lança-Granadas Foguete; IN - inimigo; "Kimbo" - aldeamento nativo; "chana" - planície, equivalente a "chão"


mls

01 junho 2017

Reserva Naval - Morto em Combate a 2 de Junho de 1973


António Bernardino Apolónio Piteira
(1947-1973)


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 1 de Dezembro de 2009)





Foi o único Oficial da Marinha de Guerra Portuguesa - Reserva Naval, morto em combate no período em que decorreu a Guerra do Ultramar nos três teatros de África, em Angola, Moçambique ou Guiné.

Recordado por quantos com ele iniciaram a caminhada na Armada, em 18 de Fevereiro de 1971, António Piteira integrou a Classe de Fuzileiros do 18.º CFORN.

A circunstância de ter sido acontecimento único na História da Reserva Naval, seria motivo suficiente para invocar a memória desse triste facto, mas a personalidade invulgarmente simples e simpática de António Piteira, agigantava-se pela desinteressada camaradagem e amizade manifestadas em permanente alegria de viver, marcando profundamente quem o conheceu ou com ele privou de perto.

Natural da freguesia da Quinta do Jogo, do concelho de Arraiolos, onde nasceu em 11 de Outubro de 1947, era filho de Balbina Rita Apolónio e de Augusto da Silva Piteira.

Deu os primeiros passos, no ensino, nas Escolas da região e por aí se manteve até ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

A entrada na Escola Naval interrompeu-lhe a vida académica, iniciando-o numa nova fase a que se entregou com contagiante entusiasmo, marcando camaradas e guindando-se a figura de relevo na Amizade, a mais nobre virtude da vida.

Promovido a Aspirante FZ RN em 13 de Outubro de 1971, frequentou o curso de Fuzileiro e foi destacado para Angola, onde chegou a 18 de Setembro do ano seguinte, com o posto de STEN, assumindo o comando do 3.º Pelotão da Companhia N.º 1 de Fuzileiros.

No dia 2 de Junho de 1973, pelas oito horas da manhã, integrado numa coluna de viaturas do Destacamento do Zambeze, em missão de serviço à Lumbala, foi alvo de uma emboscada inimiga. Dessa emboscada, ocorrida na Picada entre Lumbala e Chilombo, a cerca de dez quilómetros desta última localidade, resultou a morte de António Piteira.




O Destacamento do Zambeze e a picada de Lumbala para o Chilombo



Na passagem do 30º aniversário da sua morte em 2003, a simplicidade das palavras de Adelino Couto Rodrigues da Silva, camarada de curso e também fuzileiro, foi elucidativa:

“...Recordo-o com eterna saudade e grande emoção. Afirmo ter sido um privilégio conhecê-lo e usufruir da oportunidade de com ele privar e dele me ter tornado amigo. Tinha grande vontade de viver e o destino pregou-lhe uma partida.
Este mundo louco tem destas coisas.
Até sempre, camarada amigo. Um dia vamos encontrar-nos e retomar as nossas conversas, estupidamente interrompidas...”


António Piteira, ainda hoje mantém entre amigos a camaradas um sentimento de tristeza e perda que perdura depois de decorrido tão longo período, ficando indefectivelmente ligado à História da Reserva Naval e da Marinha como mais uma jovem vida ceifada numa guerra que não olhou a quem arrebatou ao nosso convívio.




Também na «Sala Reserva Naval da Escola Naval», a memória de António Piteira está nobremente representada e, anualmente, é atribuído um Prémio com o seu nome, ao Cadete que, de entre os seus pares, por votação secreta e universal de todos os alunos daquela Instituição manifestar, ao longo de quatro anos e de forma mais significativa, as virtudes que se reconheciam ao homenageado – Altruísmo, Camaradagem, Generosidade, Solidariedade e Simpatia.


Fontes:
Texto e imagens de Manuel Lema Santos, 1TEN RN (lic), 8º CEORN;

mls