31 março 2020

Reserva Naval na LFP "Bellatrix", P 363 - Parte I


Guiné, 1970 - Minha Querida "Bellatrix" = NRP 363 - Parte I

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 12 de Fevereiro de 2010)




Em cima, no sul da Guiné as entradas das barras dos rios Cumbijã e Cacine, a ilha de Melo,
Em baixo, a povoação de Cacine e uma morança da tabanca





Preâmbulo

Durante seis meses fui Comandante da LFP «Bellatrix». Agora parece pouco tempo mas, na altura, já casado e com prole iniciada e, ainda por cima na Guiné, pareceu-­me muito!

Eu até era para ter ficado no Estado-Maior da Armada, em Lisboa, mas um dia, ao fim de seis meses, estava eu muito sossegadinho no 2.º andar do Terreiro do Paço a olhar para o Tejo, quando o meu Comandante ao tempo, o CMG António Duarte da Cruz Filipe me chamou e disse:

"Bual, dados os bons e leais serviços prestados, e porque se aproxima o seu aniversário, a Marinha não quer deixar passar em branco a efeméride e por isso aqui tem!"

E estendeu-­me a valiosa prenda, um lindo bilhete de avião da TAP para o dia dos meus anos, de ida para Bissau (só de ida), acompanhado pela competente Guia de Marcha, "o todo" embrulhado nas amáveis palavras de uma gentilíssima portaria de nomeação, onde eram tecidos os maiores encómios à minha capacidade de comando – o que eu até estranhei, porque na altura ainda estava por demonstrar!

A primeira reacção foi de recusa, a minha modéstia não me permitia aceitar tal distinção, nem eu me considerava merecedor de tão valiosa prenda...mas, as palavras insistentes e emocionadas do Sr. Comandante amoleceram a minha resistência e fizeram-­me aceitar o presente.

E lá fui...

O primeiro contacto

Cheguei a Bissau às duas e meia da tarde de um daqueles dias da época das chuvas, em que o calor é abrasador e a humidade insuportável, daqueles dias em que, chegado à porta do avião, me senti empurrado para trás pelo peso do ar.



Em cima: Num registo da LDG «Alfange», amarrada à bóia em Bissau, um panorama da Av. Marginal com as torres da Sé ao fundo e o NM «Braga» atracado ao cais.
Em baixo: A ponte-cais em T de Bissau, na normal azáfama de carga e descarga de batelões, de e para viaturas militares. Por detrás, em primeiro plano, o edifício do Comando de Defesa Marítima da Guiné (antigo edifício das Alfândegas).



À minha espera, o meu amigo Zé da Silva Dias, o da Reserva Naval, ao tempo Comandante da LFP «Deneb» e, interinamente, da LFP «Bellatrix» que me estava destinada, o cujo pegou em mim e me levou à Solmar, onde nos dessedentámos e comemos um bife; daí, para a sesta no «Hotel Reserva Naval»; ao fim da tarde, para um magnífico jantar em casa de um amigo dele que amavelmente se dispôs a tentar ajudar a fazer-­me passar o inesquecível dia de anos.

E foi ainda meio enressacados que, logo bem cedo no dia seguinte, embarcámos na LFP «Bellatrix» para a viagem da passagem do comando. Como estreia, não foi mau; pelo canal de Melo até Cacine, onde a amável convite do residente desembarcámos para jantar, no aquartelamento do Exército.

Para jantar e para levar na cabeça, que ainda íamos na sopa quando começaram a ouvir-­se uns sons "sui generis", novos para mim, mas que logo me explicaram serem rebentamentos provenientes, ao que parecia, de umas morteiradas amorosamente enviadas do outro lado da fronteira pelo PAIGC, com lembranças do Sekou Touré (foi o meu baptismo de fogo e, graças a Deus, o mais perto que jamais dele estive).

Interrompido o jantar, esperámos, e o Zebro nunca mais! E o barulho afastava­­-se, afastava­-se..., em direcção ao mar. E, enquanto conjecturávamos sobre o que se poderia estar a passar - púnhamos até a hipótese de deserção do fogueiro -, começámos a ouvir gritos e pedidos de socorro; era o pobre desgraçado, ofegante (e apavorado, que aquilo eram águas de tubarões), a nado.

Tinha caído do bote, embora com desculpa, que os paneiros do fundo estavam partidos e, com a mareta, o dito bote dobrou e cuspiu­-o. De modo que, para começo, não estava mal: ao fim de pouco mais de 30 horas na Guiné, já tinha levado na cabeça, tido um homem ao mar e perdido o Zebro!

Por outro lado, e em contrapartida, que também se deve ver o lado bom das coisas, ao fim de pouco mais de 31 horas na Guiné, já tinha passado incólume por uma operação de fogo, feito um salvamento no Cacine e recuperado uma embarcação à deriva...

E assim estava estabelecido o primeiro contacto com a «Bellatrix», a gloriosa P 363, autêntica lancha voadora com o seu jeito inconfundível de marcar presença pelo fumo, nos seus picos entusiasmados de 8,19 nós a favor da corrente!



A LFP «Belatrix» em plena navegação

A guarnição

A «Bellatrix» tinha uma característica que a distinguia das outras lanchas em serviço na Guiné: enquanto que, normalmente, uma guarnição em cada uma delas era rendida de uma só vez, Comandante e restantes elementos, na «Bellatrix», por contingências várias e coisas passadas, as rendições eram individuais.

Sorte minha, digo eu, porque isto quer dizer, na prática, que acabávamos por nunca estar na lancha, perdoe-­se­-me a expressão, aos papéis. Que é como quem diz que, quando eu cheguei, piriquito, a rapaziada explicou-­me praticamente tudo. E depois, conforme eles iam sendo rendidos, já o Comandante (cá o rapaz) dominava a situação... Penso eu de que!...Mas, fora de brincadeiras: guarnições como aquela não haveria muitas, decerto...

Passaram por lá, durante o meu tempo, dois Mestres, Cabos por sinal - que nunca me calhou nenhum Sargento – mas que acabaram dando conta do recado, Artilheiros, destemidos e de pontaria tão afinada que dispensavam a antepara da peça (reparem que, no modelo da protagonista e, correctamente, não está representado este acessório, Fogueiros que sem os milagres dos quais nunca teríamos ido a lado nenhum e Radiotelegrafistas que até conseguiam comunicar com Bissau (e com o EMA!) do meio do tarrafo do Cacheu!...

Pescadores eméritos, que graças a eles (para os cruzeiros do Buba só levávamos arroz, batatas e verdes) as proteínas arranjavam­-se lá, diariamente! Animadores fantásticos, organizadores de tempos lúdicos, que até a segurança aos tubarões garantiam, também no Buba, perfazendo círculos com o Zebro à roda da lancha e transformando as águas circundantes em piscina fabulosa...

E as ostras, nos baixos do Tombali? Eram às carradas, de cada vez que levávamos um combóio de batelões à foz do Cumbijã! E o Peciche (ou Pecixe), nunca consegui apurar, que tratava de nós todos, e tinha uma mãozinha para o tempero que, vou-vos contar, só não o trouxe para Lisboa porque ele não quis vir comigo.

Era uma equipa do melhor e devo dizer que só me faltou um electrónico para reparar o radar quando uma vez o seu PPI se transformou numa flor (saudosos ‘70s, dos hippies..).

A vida a bordo

Não faria certamente muita diferença da vida a bordo das outras lanchas, a vida na LFP «Bellatrix» em cruzeiro. Levantar, fiscalizar, almoçar, fiscalizar outra vez, jantar e deitar! E, para ajudar a passar o tempo, ler, escrever (quem ainda não tinha perdido a escrita, já se sabe), conversar, ouvir música, beber uns copos e fazer paciências.

E esperar pelo dia seguinte...

Eu passava a maior parte do tempo entre a ponte e a câmara, que o calor não convidava a estar ao ar livre. Aliás, na câmara, cohabitava comigo um ratinho que era muito meu amigo. Dormia na cama de estibordo, por cima da qual havia uma prateleira com livros a que, pomposamente, chamava biblioteca e, todas as noites, entre as duas e as três da manhã, o meu amigo vinha cumprimentar-­me, saltando da biblioteca para o chão e usando a minha barriga como degrau.Lá ia à vida dele e só nunca percebi como é que voltava para casa, que nunca o consegui surpreender em tal trajecto.

Havia outras habitantes da câmara, mas com essas dava-­me menos. Não eram nada amigáveis, parecia até que fugiam de mim e teimavam em fechar­-se no seu domínio. Pois é, eram as baratas que, provavelmente para se defenderem do tal calor que nos oprimia a todos, optaram por viver no frigorífico. Entravam e saíam à vontade pelas borrachas, que na verdade não vedavam lá muito bem...

Lembro­-me até de uma vez em que recebi um daqueles miminhos por que todos ansiávamos que nos mandassem de Lisboa. Era uma remessa particularmente gulosa e continha, entre outras iguarias, um extraordinário queijo da serra, amanteigado e ainda por cima e feliz coincidência, chegou-­me a dita encomenda em véspera de sair para um cruzeiro.




Um troféu perfeitamente ao alcance, à época...

Feliz, pensei que aquele cruzeiro até me ia custar menos a passar, com aquele queijinho para ir papando. Pressuroso, carreguei-­o para a lancha e largámos de Bissau de madrugada. À noite, já no Cacheu, para culminar um petisco do Pecixe e com um vinho que eu até tinha prévia e cuidadosamente escolhido, abri cerimoniosamente o queijo... e, oh céus!, excedia em tudo as minhas expectativas mais optimistas: a massa escorrida, o aroma, o paladar!!! Os cheiros da serra, das ervas da serra, do cardo da serra, tudo me acudia à memória!!!... Eu via­-me lá, pastor de um rebanho de ovelhas pastando num fim de tarde, o som bucólico dos badalos embalava­-me...

Oh! Cacheu, onde é que estavas que já nem de ti me lembrava! Aí apareceu­-me outra vez o Pecixe para levantar a mesa, e acordou-­me do sonho. Ia-­o matando...e de novo cá em baixo, no real verde escuro acastanhado do Cacheu, guardei o queijo, antecipando já o almoço do amanhã. Até dormi melhor nessa noite, os sonhos que eu tive...

Mas, na manhã seguinte (quem me dera não ter acordado): o queijo, o meu queijo, o meu rico queijinho, jazia no chão da Câmara! O frigorífico não era lá muito aficionado de fazer frio: gelo, nem pensar, e frio, talvez uns 5 ou 6 graus abaixo da temperatura exterior (que era p’raí de 40° à sombra...), menos do que isso, não! Sobre as borrachas do dito já falei, quando contei as baratas!

De modos que durante a noite, o meu rico queijinho, amanteigado como só ele, com a temperatura morninha lá de dentro, foi escorrendo, escorrendo, primeiro pelo chão do próprio frigorífico, depois por baixo das borrachas e para fora dele e, por fim, pelo chão da câmara afora!...Quem se aproveitou da situação e se alambazou com o meu queijo foi o meu amigo, durante a sua saída nocturna. E eu, em contrapartida, entrei numa fase depressiva aguda que me durou pelo menos até ao fim do cruzeiro.

O caminho marítimo para o Cacheu

Primeiro que tudo, não é para me gabar (ou talvez até seja), mas quero fazer notar que nunca, repito, nunca encalhei na Guiné.

Posto isto, quero referir que o meu primeiro cruzeiro foi no Cacheu. E dessa primeira vez, como de resto nas 2 ou 3 seguintes, segui escrupulosamente o que mandavam os livros e aconselhavam as boas e seguras práticas de navegação: ia ao mar, contornava o continente até às bóias de marcação do canal (lembram­­-se?..., daquelas que não estavam lá, mas que vinham nas cartas e qu’a gente calculava que deviam ser mais ou menos por ali...) e daí, pimba: direito a terra e Cacheu acima.

Mas um dia, em conversa com um comandante de uma LDG (não juro, mas parece­me que seria o Comandante Costa Correia) percebi que eles não davam essa volta e iam directos da foz do Mansoa à barra do Cacheu.

Não quis ouvir mais nada: pois se eles calavam pouco menos do que eu, o que é que eu andava ali a fazer às voltas? E fui-­­me às cartas, passei a dar mais atenção às tabelas das marés e passei a ir também por lá. Nunca me arrependi e cortei algumas 6 ou 7 horas à viagem, ainda por cima as mais chatas...

O Cacheu

Só quem lá esteve é que sabe de que é que eu estou a falar. Daquele braço de mar, com mais de duzentos quilómetros de comprido, com quase um metro de amplitude de maré em Farim, daquela espécie de canal de perfil em U onde corria um líquido viscoso verde escuro acastanhado que alguns diziam ser água (no que eu nunca acreditei!), com o tarrafo claustrofóbico emergindo erecto das margens, por vezes até 20 m de altura, com os olhinhos dos crocodilos (dos poucos que escapavam ao Zé Luís Roque Pinho) a espreitarem por entre o emaranhado das raízes e, sobretudo, do negro.




A LFP «Canopus» (irmã gémea da LFP «Bellatrix»)efectua uma escolta no rio Cacheu.

O negro, negro, das noites sem lua, um negro grosso que até pesava, um negro baço onde não se via a meio metro, um negro que metia medo. Um negro como eu acho que deve ser o negro dos buracos negros.

No Cacheu, os dias passavam mais devagar do que nos outros sítios, devia ser das horas serem mais compridas, ou então daquela humidade grossa (esverdeada, no Cacheu até a humidade era esverdeada...) que se metia dentro dos relógios e lhes atrasava os ponteiros.

Num dia típico no Cacheu, ao nascer do Sol, levantava­-se o ferro e ficava­-se à deriva enquanto o Sol projectava a sombra do tarrafo no rio; então, quando o calor se tornava insuportável, amarrávamos na margem ensombrada; quando o Sol chegava ao zénite, mudávamos para a outra margem; quando a sombra voltava a cobrir o rio, desamarrávamos e derivávamos de novo, até ao pôr do Sol. E, entretanto, é claro, almoçávamos e jantávamos os petiscos do Pecixe.

A excepção eram as clareiras: aí sempre havia algum "suspense", punham­-se os motores a trabalhar, o pessoal nos postos de combate e, às vezes, até se fazia fogo para afinar a pontaria, ou então, quanto mais não fosse, para gastar munições em fim de prazo...

Era no Cacheu que a «Bellatrix» registava os consumos mais baixos de gasóleo e mais altos de líquido sedíveis: em média, 2 caixas de vinho, 3 garrafas de whisky e 3 garrafas de gin, por cruzeiro.




José Manuel da Costa Bual
14.º CFORN


(continua)

Fontes:
Texto de artigo publicado na Revista n.º 11 da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Abril 2000; Fotos do Arquivo da Marinha e do autor do blogue;


mls

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