(Post reformulado a partir de outro já publicado em 16 de Janeiro de 2009)
Quem esteve na Guiné, dificilmente terá concluído a sua missão como militar naquele território, sem ter sido confrontado com a tarefa de atravessar ou contornar uma bolanha.
Ainda que por puro desporto e sem treino específico, a caminhada proporcionava-se na companhia de um camarada fuzileiro ou de um aquartelamento em terra, visitado numa povoação aportada.
Na execução de uma operação com determinado objectivo traçado era parte quase inevitável do percurso a percorrer.
Atravessar ou contornar tinha sempre a ver com o balanço dos "riscos" a correr em função da opção escolhida para o fazer.
Ouriques em Ganturé, onde mulheres trabalham na bolanha
Também assim é no decorrer da vida, cada qual enfrentando travessias de bolanhas minadas em que é preciso ter sorte para as ir transpondo sem danos retirando alguma vantagem dos resultados, bafejado pela sorte,
O conceito de sorte encerra, em si próprio, algo de aleatório, de destino inponderável e, o que distingue quem a tem de quem a não tem, é exactamente a volatilidade do significado, na forma como o que de bom ou de mau traz vem ao encontro de cada um de nós, ainda que para isso não tenha havido qualquer interferência pessoal significativa.
Quem tinha de atravessar a dita bolanha, podia evitar correr perigos optando pelo percurso do caminho pantanoso e alagadiço, penoso de atravessar mas sem a ameaça de existência de minas montadas, contrariamante aos ouriques - pequenos diques que delimitam as bolanhas retendo a água das chuvas, firmes na pisada e mais rápidos na travessia mas com riscos agravados.
Neste sentido e, como analogia, também podemos ajudar construir a nossa própria sorte, prevendo e alterando alguns factos ou a ordem por que vão tomando forma, na prossecução de determinado objectivo.
A insegurança de determinado momento, caso das frentes de guerra, catalisa e gera a busca de mecanismos subconscientes de protecção e atracção da dita sorte em que a fé, míticas crenças, talismãs, amuletos, medalhas ou santinhos, vudus e também mascotes, adquiriam marcada expressão no nosso e no comportamento das pessoas que nos rodeavam.
A LDG «Alfange» e a especificidade de um passageiro transportado, chimpanzé mascote de uma companhia do Exército, fardado a rigor e promovido a Cabo
A ferradura, a pata de coelho, o gato preto, o treze, o corno ou a coruja e tantos outros, são apenas algumas das inumeráveis manifestações dessa prática fetichista, nenhuma delas garantindo, ao tempo, o regresso assegurado a quem as exibisse como protecção.
As mascotes, de todos os tipos, vertebrados ou invertebrados, o cão, o macaco o chimpanzé, a cobra e, imagine-se, até um chibo, aconchegavam o ambiente no preenchimento de vazios afectivos, creditando protecção, propiciando distracção, entretenimento e até algumas exibições dignas de circo, associando-se-lhe com facilidade a identificação da própria unidade.
O "macaco kom", baptizado de "Buba", mascote da LFG «Orion»
Também eu usei religiosamente um pequeno fio de ouro, carinho pré-comissão de familiar, com uma medalha de S. Judas Tadeu, reflexo de crença e fé pessoais que, mais tarde, se quedou perdido num mergulho nas águas da ilha João Vieira do arquipélago dos Bijagós.
Na mesma penada ocorre-me recordar os morcegos de Bolama ou os pequenos grupos de macacos babuínos, em grande algazarra, pendurados no alto tarrafo ao longo das margens do Cacheu.
Quase me esquecia do pelicano do final da tarde que, diariamente em Bissau, como que no cumprimento de um ritual, razava em sentido inverso ao da manhã as águas do Geba direito à foz, para no dia seguinte voltar a repetir o percurso. Não se cansava porquê? Teria sósias ou era sempre o mesmo?
Não o ver, isso sim, significava o azar garantido de uma saída de Bissau para uma missão qualquer, quiçá mais complicada que a rotina doentia daquele pelicano.
Entre operações e tarefas de bordo salpicadas de episódios exóticos, houve alguma inconsciência do risco corrido nas aventuras inventadas para queimar cartuchos de tempo.
Regressei incólume, mas também essa sorte não foi igual para todos.
Fontes:
Texto e fotos do espólio do autor do blogue com cedência do Museu de Marinha
Texto e fotos do espólio do autor do blogue com cedência do Museu de Marinha
mls
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