(Post reformulado a partir de outro já publicado em 3 de Novembro de 2016)
O livro “O Quarto da Alva” tem como autor um oficial dos Quadros Permanentes da Armada e foi editado pela “Âncora Editores”. Integrou o Curso Oliveira e Carmo da Escola Naval que terminou, simultaneamente, com o 8.º CEORN – Curso Especial de Oficiais da Reserva Naval que, em 9 de Outubro de 1965, alistou 68 cadetes.
Relata aquela obra um conjunto de memórias pessoais referentes ao período de 1966 a 1975. Depois do autor terminar o curso da Escola Naval, efectuou ainda o curso de Fuzileiro Especial e foi integrado no posto de Guarda-Marinha como 3.º oficial no DFE 8 em Moçambique – Lago Niassa (Metangula, Cobué e Cabo Delgado).
Terminada aquela comissão, depois de uma curta estadia no regresso, embarca no NRP “Nuno Tristão” para a Guiné, como oficial de navegação e, a partir de 1970, passa a fazer parte da Missão Hidrográfica de Angola.
Em nenhuma ocasião do meu tempo de vida na Marinha recordo de me ter cruzado com a personalidade em causa. Nem na Guiné (1966-1968), nem no Grupo n.º 1 de Escolas da Armada (escassos meses), nem no Comando Naval do Continente (1968-1970) e nem no Estado-Maior da Armada (1970-1972). Talvez possa ter existido algum cruzamento fugaz e recente no Clube Militar Naval ou na Escola de Fuzileiros, onde o livro foi apresentado, mas apenas a nível de conhecimento à distância.
Não adquiri a obra mas foi-me cedida a título de empréstimo. Li-a de fio a pavio. Para lá de não ter qualquer observação a fazer quanto a qualidade literária e temas relatados de inspiração pessoal, militar ou até de ficção – bastante em minha opinião - encontro-me no direito de exprimir o meu marcado desagrado quanto às múltiplas e sistemáticas apreciações feitas pelo autor à forma como se refere aos oficiais da Reserva Naval.
Começo por informar que, pessoalmente, nunca em todo o meu tempo de permanência na Marinha de Guerra Portuguesa ouvi aplicar, em qualquer circunstância, o termo miliciano a um oficial, sargento ou praça daquela Instituição. Como “filhos da escola”, ouvi classificar muitos ou quase todos mas, miliciano, acrescentado a um léxico de termos náuticos ou navais, assume ser mesmo um étimo de grande e aberrante criatividade.
Logo no início da obra, durante a frequência do curso de Fuzileiro Especial, a partir de 23 de Março de 1967, escreve o autor:
“...Não havia qualquer oficial miliciano da Reserva Naval neste Curso de Fuzileiro Especial...”
Mais à frente na página 21, já em Moçambique volta à carga:
“...Agora ali, isolado no Cobué praticamente sem navegar, ou mais propriamente, navegando apenas na qualidade de “tropa transportada no lago” e sobretudo quando seguíamos para mais uma operação, sentia então uma inconfessável inveja de outros oficiais, quase todos milicianos, e que ali estavam paulatinamente a comandar as lanchas de fiscalização. As nossas missões eram de tal forma diferentes e contrastantes, que enquanto de um lado estavam esses compelidos milicianos na missão de comando de uma unidade naval, do outro lado estaríamos nós, enquanto oficiais de um Destacamento de Fuzileiros, a residir naquele horrível aquartelamento ...”
Mais à frente, a partir 3.ª feira, 24 de Março, na página 22:
“... Ainda que a responsabilidade e o risco da missão de comandar um grupo de homens em situações de combate fosse porventura a mais impressiva incumbência que naquele tempo se poderia exigir a um militar, bem ao contrário dessa nossa atribuição, os comandantes das lanchas não corriam riscos de guerra, eram mais bem remunerados e estavam numa missão muitíssimo mais cómoda, para a qual supostamente, quer pelos tirocínios realizados, quer pela formação académica naval, estaríamos mais preparados.
Já a bordo do Império notara esta outra curiosidade, embora de sinal contrário:
As nove Companhias do Exército eram todas comandadas por capitães milicianos, dos quais o juiz Neves Costa era o decano, enquanto apenas a unidade de Fuzileiros Especiais da Marinha era comandado por um oficial do Quadro Permanente. Verificava-se assim que no vasto conjunto de mais de sessenta oficiais que compunham aquelas forças ali embarcadas, apenas quatro oficiais eram dos Quadros Permanentes das Forças Armadas, nós os três da Marinha e o Alferes Glória Alves da Companhia de Comandos. Enquanto a Marinha privilegiava alguns oficiais milicianos, confiando-lhes naquele cenário do Lago Niassa uma missão menos desgastante, olhando então aquela amostra embarcada no Império, a intenção parecia inversa no Exército, o que provavelmente terá sido, naquele tempo de guerra, apenas uma situação de excepção, talvez só isso....”
Continua na página 46:
“...Já bem acordado...tive a grata surpresa da chegada da LF «Castor», que saira logo de madrugada de Metangula, comandada pelo Cabral Fernandes, um oficial miliciano que interrompera o curso de engenheiro agrónomo e cumpria o serviço militar na Marinha, na qual também vinha o meu amigo Guilherme Allen. Camarada de curso da Escola Naval e ainda do mesmo curso de Fuzileiro Especial....”
mls - não condiz com o relato do Comando da LFP “Castor”
Ainda na página 46:
“...Mal o tinha sabido, partiria logo para o Cobué ao nosso encontro na Lancha «Marte», comandada pelo subtenente Manuel Abecassis, e apareceria assim de surpresa para nos felicitar apenas algumas horas depois de termos enviado a mensagem...”
mls - O Manuel Abecassis já era então 2TEN RN desde 29.4.66
Ao primeiro de Abril, página 50:
“...Nesta operação participava a totalidade do nosso Destacamento, embarcada na lancha Mercúrio, comandada pelo 2.º tenente Torres Sobral, o único comandante de lancha que não era miliciano. A pequena unidade ia carregadíssima...”
mls - não condiz com o relato do próprio Comando da LFP “Mercúrio”
Continua em Setembro de 1967, página 96:
“...Contava e ainda reconta o Cabral Fernandes, com essa particularidade comum a muitos oficiais milicianos da Reserva Naval que cumpriram comissões nas três zonas de campanha em África...”
Depois de concluída a comissão, já em fase de substituição pelo DFE 9 mas ainda no Niassa, página 99:
“...O primeiro-tenente Joaquim Barreiros acabara de chegar ao Lago para chefiar a esquadrilha de lanchas e presidia nesse dia à mesa onde os oficiais subalternos se preparavam para mais um dos invariáveis repastos, quando se deu o impensável. Vinha aquele «maçarico» de mais um sofisticado gabinete de algum Almirante Superintendente ou de uma Divisão do Estado-Maior...”
mls - de meu conhecimento a referência está feita ao hoje CAlm Joaquim Espadinha Galo
Sobre a chegada do médico, Dr. Noivo, na página 115:
“...Logo à chegada, ainda na pista de terra batida, alguns oficiais em serviço na Base, a maioria milicianos da Reserva Naval, tinham aproveitado a oportunidade para simular um exercício de reacção...”
Pela primeira vez, parece haver tratamento adequado, na página 116:
“...pelo que ainda antes do Bastos e do Serra regressarem de Lisboa , se apresentou para cumprir os cerca de dez meses em falta para o fim da comissão, o Subtenente Fuzileiro da Reserva Naval, Armando Santos Martins. Em meados de Janeiro, já com a Unidade recomposta e face à minha lesão, com ele a «jogar» no meu lugar...”
mls - Alguma consideração especial por se tratar de um oficial do mesmo Destacamento, substituto do autor ou por ter dedicado uma poesia à Unidade?
Ou ainda na página 129:
“...certificação que o havia de habilitar a ir pilotar um avião Dornier que prestava serviço em Metangula, oferta à Marinha da empresa Lusalite, propriedade da família do Manuel Abecassis, um oficial da Reserva Naval que comandava uma das lanchas do Lago Niassa, a “Júpiter”...”
mls - Deferência especial por ter em conta a oferta à Marinha?
Novamente na página 191:
“...Ao regressar a Moçambique, reencontrara na Escola de Fuzileiros o Frederico Rebelo (8.º CEORN), oficial miliciano da Reserva Naval, também chegado de uma longa comissão do leste de Angola...”
mls - O 2TEN FZ RN Frederico da Luz Rebelo, já falecido, oficial da Reserva Naval do mesmo curso que eu, 8.º CEORN, mereceria mais correcta referência, até tendo em conta o relacionamento de amizade havido com o autor.
Ainda na página 206:
“...No entanto, num certo dia em que eu entrava despreocupadamente num café onde era assíduo frequentador, ouviu da boca do João Reis, um subtenente miliciano que regressara há pouco do Lago Niassa...”
Notas finais:
– “O Anuário da Reserva Naval 1958 - 1975”, Lisboa, 1992, é uma co-autoria dos Comandantes Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, ambos do mesmo curso do autor de “O Quarto da Alva”, o curso Oliveira e Carmo da Escola Naval. Ao longo de 144 páginas esplana de forma clara, objectiva e pormenorizada, a necessidade que a Marinha teve de recorrer às Universidades para preencher a insuficiência de quadros de oficiais subalternos, exigência resultante do alargamento imposto pelo conflito armado que o país enfrentou então - a Guerra do Ultramar.
– Para quem leu aquele Anuário, correu os olhos pela listagem e ficou a conhecer a história resumida dos 1.712 Oficiais da Reserva Naval que integraram 25 cursos entre 1958 e 1975, tem sérias dificuldades em identificar algum deles como sendo um dos referidos ao longo das mais de três centenas de páginas, mais ou menos romanceadas de “O Quarto da Alva”, num modelo de escrita que, nas múltiplas referências à classe de Oficiais da Reserva Naval, se mostra leviano, depreciativo, subalternizante e até revelando pouco respeito pela própria Instituição onde, Personalidades de outro nível Cultural e Hierárquico, definiram as escolhas para a classe da Reserva Naval e o porquê dessas escolhas.
In "Wikipédia" Milícia (do latim militia) corresponde a uma designação genérica das organizações militares ou paramilitares, ou de qualquer organização que apresente grande grau de actuação. Stricto sensu, o termo refere-se a organizações compostas por cidadãos comuns armados (apelidados de milicianos), ou com poder de polícia que, em princípio, não integram as forças armadas ou a polícia de um país. As milícias podem ser organizações oficiais mantidas parcialmente com recursos do Estado e em parceria com organizações de carácter privado, muitas vezes de legalidade duvidosa. Podem ter objetivos públicos de defesa nacional ou de segurança interna, ou podem actuar na defesa de interesses particulares, com objectivos políticos e monetários. São ainda consideradas milícias todas as organizações da administração pública terceirizada e que possuam estatuto militar, não pertencendo no entanto às Forças Armadas de um país, isto é, ao Exército, Marinha de Guerra ou à Força Aérea.
Fontes:
Anuário da Reserva Naval dos Comandantes Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado; O Quarto da Alva, Raul Patrício Leitão, Âncora Editores;
mls
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