29 abril 2020

Reserva Naval e Fernando Pessoa


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 4 de Junho de 2010)


A imagem, de rara oportunidade e beleza, e os temas abordados – Mar, Marinha e Reserva Naval, perdoam este atrevimento metafórico do imortal Fernando Pessoa, in Mensagem.




Foi captada de bordo do NTM “Creoula”, no ano de 2003 numa viagem organizada pela AORN – Associação de Oficiais da Reserva Naval para jovens, filhos de associados e familiares, com o apoio da Marinha, proporcionando-lhes um primeiro contacto com o Mar.

Creoula 2003”, numa viagem redonda Lisboa – Funchal – Porto Santo – Lisboa realizada em Agosto/Setembro daquele ano, representou também o espírito da geração anterior de pais que, quase meio século antes, com início em 1958, serviram o País como oficiais da Reserva Naval da Marinha de Guerra.

E fizeram-no então no Continente e Ilhas, mas também também nos teatros de guerra de Angola, Guiné e Moçambique. Também em Cabo Verde, Macau e Timor.

Especializados em múltiplas áreas profissionais, a navegar ou em terra, como oficiais de guarnição de unidades navais ou fuzileiros cumpriram o dever de cidadania que lhes foi exigido.

Em números, de 1958 a 1974, desfilaram pela Marinha 1.712 oficiais da Reserva Naval e de 1976 a 1992 mais 1.886, uma vez que durante o ano de 1975 não foi realizado qualquer curso, contrariando aqueles números a ideia natural de que, o final dos conflitos além-mar, arrastaria consigo uma redução progressiva de admissões daquela classe de oficiais na Marinha de Guerra Portuguesa.

A passagem de 3.598 Oficiais da Reserva Naval pela Armada talvez justificasse um simbolismo próprio dentro da Instituição Marinha.

Voltaremos ao assunto em tempo próprio.





Fontes:
Texto e tratamento de imagem do autor do blogue; Revista n.º 17 da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Março 2004; Colaboração fotográfica de Cristina Silva.


mls

26 abril 2020

In Memoriam "Vice-Almirante Francisco Ferrer Caeiro"


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 10 de Outubro de 2017)

O último Comandante naval da Base Aérea do Montijo - BA n.º 6


"...
A vida de um indivíduo prolonga-se no mundo que a envolve, na medida em que este for impregnado pelo poder de irradiação das suas potencialidades gregárias. O juízo que faça de si próprio perde-se na primazia do julgamento que outros lhe outorgarem. Aquele que muito pode mas nada sabe dar, morre consigo próprio.
..."


Francisco Ferrer Caeiro, 1976





Vice-Almirante Francisco Ferrer Caeiro






Data de nascimento: 22-10-1910
Filiação: Agostinho Felício Pereira Caeiro e Dª. Beatriz Augusto Cutileiro
Natural de S. Pedro - Évora
Casou em 28-3-1936 com D. Carmen Cesariny de Vasconcelos
Descendência: Pedro, nascido a 18-3-1937 - Contra-Almirante e José Manuel, nascido a 15-1-1939 - Engenheiro Químico
Promoções: Asp. 1-10-1929; GM. 1-9-1932; 2º Ten. 1-3-1934; 1º Ten. 1-3-1940; Cap. Ten. 1-1-1953; Cap Frag - 1-1-1955; CMG 20-2-1958; Comodoro 10-12-1965; C/ Alm. 11-6-1968 (Vice-Almirante)

Comissões no Mar:

Cruzador Vasco da Gama - 1929; NH Cinco de Outubro - 1930 e 1932; Contra Torpedeiro Tâmega - 1930 e 1932; Canhoneira Raul Cascais - 1930, 1931 e 1932; Rebocador Lidador - 1930; Cruzador Vasco da Gama - 1931; NE Sagres - 1931, 1933 e 1934; Canhoneira Limpopo - 1931; Fragata D. Fernando II e Glória - 1932; Torpedeiro Sado - 1932 e 1934; Canhoneira Diu - 1932; Canhoneira Damão - 1933; Aviso Carvalho Araújo - 1934; NH Beira -1937 e 1938; Aviso João de Lisboa - 1947; C/T Tejo - 1950; C/T Douro - 1950; C/T Vouga 1950; FF Diogo Cão - 1961; FF Corte Real - 1961;

N/T Niassa - 1963 (Capitão de Bandeira); Aviso Bartolomeu Dias - de 9-3-1964 a 11-8-1964 (Comandante); LFG Escorpião - 1964; LFG Cassiopeia - 1964; LFP Deneb - 1964; FF Nuno Tristão - - 1965; LFG Hidra - 1965; Sub Narval - 1968; NRP Roberto Ivens - 1970; NRP Honório Barreto - 1971; NRP Santa Cruz - 1972.




O CMG Francisco Ferrer Caeiro assume o comando do NRP «Bartolomeu Dias» que lhe foi entregue pelo CMG Carlos Alberto Teixeira da Silva

Condecorações:

Medalha militar de prata de valor militar com palma MMp/vm c/p; Medalha militar de prata de serviços distintos MMp/sd; Medalha militar de mérito militar de 1ª classe MM/mm 1.ª cl; Medalha militar de mérito militar de 2ª classe (duas) 2MM/mm 2.ª cl; Ordem militar de Avis (Grã-Cruz); Ordem militar do Infante D. Henrique (comendador); Medalha militar de ouro de comportamento exemplar MMo/ce; Legião de Mérito da América do Norte (oficial) of. OLMA; Ordem de Leopoldo I da Bélgica (grande oficial) g. of. OLIB; Ordem de Mérito Naval do Brasil (comendador) com. OMNB; Ordem de Mérito Aeronáutico de Espanha (distintivo branco); Cr. OMAE d. br.; Ordem de Mérito Naval de Espanha (distintivo branco) Cr. OMNE d. br.; Medalha comemorativa das campanhas das Forças Armadas (Guiné) MC/C-G; Medalha naval de ouro comemorativa do V centenário da morte do Infante D. Henri- que MCo/IDH; Ordem de Mérito Naval do Brasil (grande oficial) g. of. OMNB; Medalha Naval de Vasco da Gama MNVG; Medalha Militar de Ouro de Serviços Distintos MMo/sd.




Painel com as Medalhas e Condecorações do Almirante Ferrer Caeiro e a placa com a dedicatória pessoal à Associação dos Oficiais da Reserva Naval



Outras datas:

21/03/35 - Começou a frequentar o curso de piloto da Escola Gago Coutinho em Aveiro;
27/03/35 - Passagem à Aviação Naval;
05/03/36 - Considerado especializado como piloto aviador militar e de hidroaviões;
23/06/50 - Concluiu o Curso Geral Naval de Guerra (CGNG);
10/03/58 - Assume o cargo de 1º Comandante da Base Aérea nº6 - Montijo;
31/12/58 - Regresso à Armada por não desejar transitar para o quadro de pilotos aviadores;
20/05/60 - Exonerado do cargo de 1º Comandante da Base Aérea nº6 - Montijo;

– De 9-3-1964 a 11-8-1964 foi comandante do Aviso Bartolomeu Dias (recebeu do CMG Carlos Alberto Teixeira da Silva e entregou ao CMG Luís Bogarim Correia Guedes);

– De 26-9-1964 a 22-9-1967 - Chefe da Repartição dos Serviços de Marinha e Comandante da Defesa Marítima da Guiné (rendeu o CFR Manuel Lopes de Mendonça);

– De 8-11-1967 - Sub-Chefe do Estado-Maior da Armada;

– De 25-7-1968 a 6-6-1973 - Comandante Naval do Continente (entregou ao Contra-Almirante Luciano Ferreira Bastos da Costa e Silva);

– De 8-11-1968 a 4-5-1970 - Comandante da Base Naval de Lisboa (em acumulação);

– De 31-10-1973 a 19-3-1975 - Chefe de Missão Militar na Nato, em Bruxelas;

– Em 4-4-1979 - Presidente da Comissão do Domínio Público Marítimo:

– Em 30-1-1980 - Passagem à situação de Reforma;




1935 - Aveiro, "Escola Gago Coutinho"
José Casimiro Alcobia Freitas Ribeiro (2TEN Av), Manuel Antunes Cardoso Barata (2TEN Av),
Alberto Henrique Ferreira Bastos da Costa e Silva (2TEN Av), Francisco Ferrer Caeiro (2TEN Av) e
Henrique Owen Pinto de Barros da Costa Pessoa (2TEN Av)




À margem da entrevista:

Em mais um dia no Ministério da Marinha, pela manhã, o Almirante chamou-me ao gabinete. Ao entrar, cumprimentei-o:

– Bom dia Sr. Almirante!

– Bom dia Lema! Olhe, tenho aqui um problema para resolver. Sabe, nós por vezes (sorriu) também erramos; estacionei irregularmente e tenho aqui o talão da multa para liquidação; gostava que me fizesse o favor de ir à esquadra proceder ao pagamento.

Enquanto dizia isto, tirou uma nota da carteira, meteu-a dentro de um envelope juntamente com o talão da multa e entregou-me tudo.

Ainda tentei vislumbrar qualquer sinal de rota a seguir e pensei formular uma pergunta, mas o cenho franzido e a distância histórica que medeava entre o Adamastor e o Homem do Leme fez-me desistir; que, apesar de tudo ainda pensava ser capaz de dar a volta a um assunto tão complicado! Ora esta! O Almirante a pedir-me para pagar a multa!

Na dúvida, fardado e com os cordões de ajudante, liguei para o motorista e fiz-me ao caminho.

Pensativo, percorri em passo estugado o longo corredor do Ministério, desci a escada de acesso à Praça do Comércio, entrei no carro e indiquei ao motorista ao que íamos. Já no caminho para a dita esquadra ia vociferando com os meus botões, cada vez mais amarelos!

Tenho de arranjar uma estratégia para me furtar à alhada em que estou metido! Eu e, obviamente, o oficial superior responsável pela esquadra...Se tenho a veleidade de chegar ao pé de um militar que se preze e dizer-lhe, assim a frio, que venho liquidar a multa, a mando do Almirante Comandante Naval do Continente, o mínimo que me poderia suceder com toda a justificação era ser arrecadado o resto do dia, não fosse eu ter a pretensão de repetir uma façanha deste tipo com outro qualquer militar com algum sentido de hierarquia.

Ao chegar, o motorista estacionou "discretamente" o carro em cima do passeio. Depois de me identificar devidamente na portaria, indaguei pelo oficial responsável, por quem fui recebido e a quem expus a minha angústia:

– “Não haverá maneira de resolver o problema?”

– “Só um minuto, Sr. Tenente”. Foi lá dentro, regressou após um curto espaço de tempo e disse-me: “– Diga ao Sr. Almirante que está tudo resolvido!”.

Agradeci e retirei-me sem qualquer pergunta.

Regressado ao Comando Naval, fui ter com o Almirante comunicando-lhe o resultado das minhas diligências e devolvendo-lhe simultaneamente a quantia entregue.

– “Então Lema, você não pagou a multa?”

– “Não, Sr. Almirante. Não foi necessário recorrer a esse processo!”

O Almirante franziu o cenho, como de resto lhe era comum, ficou a olhar para mim e rematou:

– “Não foi propriamente a forma que mais me agradou!”

Com a irreverência que me caracteriza até hoje e a convicção de ser parente, ainda que muito afastado, do homem do leme, retorqui-lhe:

– “Não faz mal Sr. Almirante, pode ser que haja uma próxima vez e na oportunidade procederei de acordo com as instruções do Sr. Almirante...

Percorreu-me um arrepio e tenho ideia de que os meus cordões de ajudante também tremeram!

O Almirante franziu perigosamente o cenho, crispou o perfil austero por uma fracção de segundo, fixou-me com um olhar penetrante... mas despregou-se a rir.

Quando me retirei ainda sorria.



A entrevista:

O Almirante Francisco Ferrer Caeiro ligou-se profundamente à História da Marinha na Guiné e não apenas enquanto Comandante da Defesa Marítima daquele território, entre 1964 e 1967, creditando-se como uma figura marcante da História da Reserva Naval.

Tive o privilégio de, por duas vezes, servir sob o seu Comando: a primeira em 66/67 enquanto Comandante da Defesa Marítima da Guiné, a desempenhava eu as funções de Oficial Imediato no NRP «Orion», LFG atribuída àquele Comando; a segunda, de 68/70 enquanto Comandante Naval do Continente e da Base Naval de Lisboa, na sua directa dependência, como oficial ajudante de ordens.

Durante anos, conservei sempre na memória a imagem de uma personalidade tão simples e humana quanto determinada e imprevisível, embora de controverso perfil; também algumas histórias de caserna inesquecíveis a que atletismo e humor militar com estrelas se aliaram sempre.

Confesso que, passados que foram mais de duas décadas após o último contacto, a primeira vez que o procurei, mais do que receoso ou intimidado, sentia-me como que na situação de ir repetir o exame de uma cadeira em que já tinha sido aprovado pelo “mestre”.

Pura imaginação minha já que amizade, camaradagem e disponibilidade foram, ao longo de alguns meses de relatos e recordações, as tónicas do relacionamento reatado em diversos encontros que com ele tive.




Em cima, o Vice-Almirante Francisco Ferrer Caeiro, no seu salote redige o texto-dedicatória de entrega das suas medalhas e condecorações, incluindo as Asas de Prata da Aviação Naval e, em baixo, em Bissau - 1967,
a bordo da LFG «Lira», junto à peça de popa, com um grupo de oficiais da Reserva Naval




Em 22 de Junho de 1999, numa iniciativa pessoal e com total autonomia de representação por parte da AORN – Associação dos Oficiais da Reserva Naval, em mais um encontro informalmente marcado na sua residência prontificou-se, amavelmente, a responder a algumas questões que tinha agendado previamente para lhe colocar. A isso se prontificou de forma familiar, com a habitual amizade e frontalidade:

mls - Como analisa o Sr. Almirante o percurso comum efectuado com a Reserva Naval entre 1957 (ano de fundação) e 1980, quer do ponto de vista de estratégia quer do ponto de vista de integração?

Alm FC - "É muito simples. As impressões que colhi nessa altura são as que prevalecem actualmente. Nos oficiais da Reserva Naval com quem lidei em variadíssimas situações, desde o comportamento em combate até à postura nos salões da diplomacia que a Marinha se orgulha de pisar o melhor que pode e sabe, encontrei sempre a melhor resposta que poderia obter.
Julgando estar a interpretar a verdade dos factos que tão importante é para mim, e tendo em conta a fama de “mau” que granjeei, arrisco afirmar que os oficiais da Reserva Naval que comigo conviveram e serviram, não colheram essa impressão da minha pessoa. Sempre me dei muitíssimo bem com esses rapazes.
Nunca me divorciei da juventude, até porque nessa altura estava bem próxima da minha própria juventude; através de um dos meus filhos, senti a crise académica, a confusão, o descontentamento.
Servindo o País como eu servi, considerei sempre como componentes do dever militar a disciplina e o sentido de justiça, procurando, em cada situação, distinguir o trigo do joio. Foi necessário articular esses conceitos garantindo que o País, em guerra, prosseguia o seu caminho com dignidade. Foi com este sentimento que recebi a entrada dos Oficiais da Reserva Naval."

mls - Como avaliaria, para ambas as partes, a integração na Marinha de Guerra Portuguesa de um universo de quase 4.000 oficiais da Reserva Naval, oriundos de todas as áreas profissionais que, ao longo de quase 40 anos, desfilaram pelo quadro dos Oficiais da Armada?

Alm FC - "Bem depressa me apercebi que os oficiais da Reserva Naval se enquadravam totalmente nos objectivos que prossegui no desempenho das minhas funções. Entendíamo-nos perfeitamente e, as pequenas discrepâncias que existiram resultaram tão somente de diferenças de personalidade normais no convívio entre seres humanos. Esses rapazes eram praticamente da geração dos meus filhos, com pouca diferença. Comportaram-se sempre com a Marinha de Guerra de uma maneira digna, ao contrário talvez daquilo que ouvia comentar a camaradas meus do Exército e da Força Aérea. Eram e sempre foram uns tipos “pacholas”.
Tudo isso se elevou a um nível extraordinário de grande admiração, de grande consideração durante a guerra (do Ultramar) na Guiné. O que aqueles rapazes foram na Guiné não tem paralelo: houve uma dedicação total e levaria talvez algum tempo a espraiar aquilo que passámos juntos e que não cabe aqui relatar. Os rapazes dos Fuzileiros então foram mesmo meus filhos."

mls - Permite-me recordar-lhe o episódio atrás relatado sob o título “ À margem da entrevista” e comentá-lo?

Alm FC - "Está a contar factos que induzem demonstrar que eu não era, afinal, “a fera” que se dizia. Era bem diferente disso. A selecção desses factos mostra, só por si, o propósito que o trouxe hoje até mim e o dever de lhe estar muito agradecido, a si pessoalmente e à AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, porque é através de provas dessa natureza que se consegue demonstrar que, muitas vezes, conclusões transcendentes devem ser tiradas de factos aparentemente simples. Só por isso, faço questão de lhes mostrar, a todos, a minha gratidão.
Não quero com isto dizer que todos os factos da minha vida sejam assim tão aleatórios quanto esses. Como toda a gente, tenho pecados que lastimo. Lastimo mas não os renego com a facilidade que normalmente temos em renegar as asneiras que cometemos. É melhor assimilarmos as asneiras como asneiras que foram porque, como alguém dizia, essas asneiras “falaram a tempo” e vieram trazer elementos para uma justiça que nós próprios desejamos."

mls - Numa carreira militar com uma vertente invulgar na Aviação Naval somando, para lá de outros aspectos, 3.412 horas de voo, pode transmitir-nos algo dessa experiência?

Alm FC - "A dificuldade é responder em extensão aceitável. Isso representa na minha vida algo que só não considero a mais importante faceta dessa mesma vida porque tenho que pôr, acima de tudo, a minha família e, sobretudo, a minha mulher. Acho que não consigo compreender a minha vida desligada desses elementos.
Também não posso dizer que esses factos foram os mais importantes por que tenho medo de estar a cometer uma injustiça para com a Marinha de Guerra. Antes de ser aviador quis ser marinheiro! Depois de ser marinheiro, fui aviador! Com muita vocação, muito entusiasmo mas não quero estabelecer comparações: é quase como perguntarem-me de qual dos meus dois filhos eu gosto mais. É impossível responder!
A Aviação e a Marinha são as minhas mães: a aviação, com aspectos muito particulares, teve para mim algo que me prendeu de uma forma muito especial, tendo de confessar, com tristeza e até com receio, poder estar a atraiçoar o que, na minha vida, foi sempre mais importante.
A Marinha foi sempre uma cadela para a Aviação Naval! Desculpe o desabafo mas trata-se da vontade de ser exacto, correcto e justo. Elas foram sempre irmãs e continuam a sê-lo, mas essas duas mães que tive nunca se entenderam e a Marinha tratou sempre com profunda injustiça a Aviação Naval.
Como dizia o Sacadura Cabral “a Marinha não gosta de gostar!” nem da sua própria irmã que era a Aviação Naval. Esta é a explicação mais benevolente que posso encontrar porque, na verdade e infelizmente, o meu mau fundo diz-me que a origem foi outra: a Aviação Naval ganhava mais uns tostões que não eram nada, comparados com o facto de 25,6% dos pilotos que para lá foram morrerem em desastres de aviação."

mls - O Museu da Reserva Naval é hoje uma realidade em curso, embora ainda com algumas limitações de espaço que não permitem à associação expôr e conservar devidamente todo o enorme espólio disponível: documentos, fotografias, equipamentos, artesanato, condecorações,...A AORN, Associação que representa a Reserva Naval, veria com todo o empenho aliado ao prestígio que tal traria à nossa Instituição, que o Sr. Almirante estivesse representado no nosso Museu com algo cujo significado mantenha viva a recordação das largas dezenas de oficiais da Reserva Naval que directa ou indirectamente desfilaram pelas Unidades que dirigiu ou comandou. Posso deixar esta possibilidade em aberto para consideração do Sr. Almirante?

Alm FC - "Com certeza. Para já a minha motivação é a mais forte e sentimental por aquilo que já lhe disse. A maneira como isso poderá acontecer é que não me ocorre de imediato. Falta-me o engenho e arte para resolver isso já. Tenho receio de que o que eu decida possa ser considerado uma forma de um indivíduo se gabar a ele próprio. Ao fim ao cabo, ninguém me gaba melhor do que eu!"

Epílogo da entrevista:

Escassos dias depois, o Almirante Francisco Ferrer Caeiro pediu-me para passar pela sua residência, o que efectuei na manhã do dia seguinte. Depois de breves minutos de amigável conversa e de forma simples e directa, conduziu-me ao "seu salote" para me informar que tinha decidido oferecer à Reserva Naval todas as suas Medalhas e Condecorações, incluindo as Asas de Prata da Aviação Naval.

Foi a AORN, Associação que representa a Reserva Naval, honrada com o privilégio da sua guarda permanente, em gesto que tem tanto de admiração e amizade como de responsabilidade acrescida na História.

Em 20 de Julho de 2000, o Almirante Francisco Ferrer Caeiro e respectiva Senhora, Dª Carmen Cesariny de Vasconcelos, numa iniciativa com algo de inédito, estiveram presentes num almoço na Parque das Nações, a convite dos antigos ajudantes de ordens, igualmente acompanhados das respectivas Senhoras.

Apenas um dos 4 oficiais da Reserva Naval que desempenharam aquelas funções não pôde estar presente, por estar ausente no estrangeiro: José Paulo d' Orey Menano do 16º CFORN.




No Parque das Nações, ladeando o Almirante Ferrer Caeiro:
Lourenço Albuquerque de Orey - 15º CFORN (à sua esquerda), Manuel Lema Santos - 8º CEORN (à sua direita) e António Forjaz Trigueiros - 19º CFORN (2º à sua direita)


Invulgar preito de homenagem, admiração e amizade, passadas mais de duas décadas após o último contacto havido com o Homem e Amigo, Comandante, Marinheiro mas também Aviador.


Manuel Lema Santos
1TEN RN, 8º CEORN, 1965




Fontes:
Arquivo de Marinha; Revista da Armada; Texto e fotos de arquivo do autor do blogue; Revista n.º 10 da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Outubro 1999;


mls

22 abril 2020

Os Astrolábios de S. Julião da Barra


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 29 de Agosto de 2013/14 de Setembro de 2017)





José Augusto da Costa Picas do Vale, foi Oficial da Reserva Naval do 1.º CFORN TE 1988/89, o primeiro curso de Oficiais da Reserva Naval que, integrando apenas especialistas em várias áreas científicas (Médicos Navais, Farmacêuticos Navais e Especialistas), se tratou de um curso totalmente realizado na Escola de Fuzileiros.

Exerceu actividade profissional durante cerca de vinte anos no Museu de Marinha, inicialmente como Oficial da Armada e, posteriormente, como consultor.

É Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Pós-Graduado em Direito e direitos dos cidadãos com deficiência, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, e Mestre em Museologia, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Presentemente é investigador associado do Instituto de História da Arte e investigador integrado do Instituto de História Contemporânea, ambos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a realizar o seu Doutoramento em História Contemporânea, com um projecto de investigação que tem por objecto de estudo o Museu do Mar Rei D. Carlos, em Cascais.

É bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, na linha de investigação científica Museologia, Conservação e Restauro.

É ainda "fellow" do "Study of the United States Institute on Culture and Society – U.S. Department of State e Steinhardt School/New York University".






Os Astrolábios de S. Julião da Barra


O instrumento que faz e marca o engano e desengano histórico-imperial do Portugal renascentista é o MAR. Os Portugueses dos séculos XV e XVI realizam a metamorfose do impossível em possível, do desconhecido em conhecido, ao serem os primeiros a, sistematicamente, enfrentar e transformar o obstáculo de silêncio e medo que é o grande mar oceano em via de comunicação planetária, vencendo assim, metódica e processualmente, o essencial das barreiras que os grandes oceanos impunham aos Europeus do Outono da medievalidade(1)

É hoje pacificamente aceite que os Descobrimentos, entendidos como fenómeno de expansão da Europa, à escala planetária, verificado nos séculos XV e XVI, tiveram por plataforma uma dinâmica multicivilizacional “onde cristandade europeia e civilizações judai-ca e islâmica, Portugal, Espanha e Itália se cruzam e tocam, fermentando o resto dos mundos do mundo”(2).

Do que nos parece não poder subsistir qualquer dúvida é de que foram os Portugueses a assumir a vanguarda deste movimento, lançando-se com denodo numa empresa que se antevia gigantesca, superando medos inculcados pela fantástica geografia medieval e, sobretudo, procurando responder com acerto a todas as dificuldades técnicas e científicas que se lhes iam apresentando.

No domínio da náutica, os navegadores portugueses que iniciaram a exploração atlântica, e que até então se haviam regido apenas por roteiros e por um muito insipiente conjunto de regras/rotinas, em grande parte herdadas do Mediterrâneo, tiveram que fazer face a um conjunto de novos condicionalismos trazidos pela navegação oceânica.

No decurso da exploração da costa ocidental africana durante a primeira metade do século XV, os navegadores foram apreendendo de forma gradual o esquema de correntes e ventos dominantes. Como consequência ime-diata desse acréscimo empírico(3), cedo se dariam conta de que as correntes e ventos favoráveis à navegação para Sul constituíam grande obstáculo para as viagens de regresso a Portugal. A demanda de uma solução para o problema levou estes homens a engolfar os seus navios, contornando ventos e correntes desfavoráveis, sem qualquer espécie de referência costeira, até encontrarem condições favoráveis para a viagem no sentido Sul-Norte. Esta derrota, então designada por Volta da Guiné ou Volta da Mina, tornar-se-ía bem conhecida a partir do segundo quartel do século XV.

A aplicação do sistema tradicional de navegação por estima, que contemplava apenas os factores rumo e distância navegada, era manifestamente insuficiente face a esta novel realidade que obrigou ao desenvolvimento de métodos de orientação baseados no recurso a observações astronómicas. Este processo desenvolveu-se gradualmente:

I – Talvez na primeira metade do século XV, alguns pilotos começaram a interessar-se pela observação da Estrela Polar sobre o horizonte – embora sem a avaliarem em graus e fracções, como depois se fez – verificando que ela diminuía à medida que navegavam para Sul (testemunhos de Alvise da Cadamosto e de Pedro de Sintra)(4);

II – Os pilotos procuraram localizar o ponto costeiro atingido ou fixar a posição do navio fora da vista de terra por comparação de alturas meridianas da Estrela Polar (narrativa das latitudes, depois de verificarem que a diferença destas coordenadas geográficas em dois lugares distintos era igual à diferença das alturas meridianas que neles tomavam à mesma estrela, ou também ao Sol, quando as duas alturas deste astro fossem consideradas no mesmo dia ou em dias não muito afastados;

V – A última fase foi a da determinação da latitude medindo a altura do Sol à sua passagem pelo meridiano do lugar e conhecendo a declinação solar na data da observação (5). As mais antigas obras impressas que se conhecem, contendo as principais regras de navegação astronómica, são portuguesas e intitulam-se Guia Náutico de Munique (c. 1509) e Guia Náutico de Évora (1516). Estes textos tiveram, obviamente, grande repercussão não só em Portugal como na restante Europa (6), deles sendo transcritos e traduzidos, total ou parcialmente, os enunciados que indicavam as mais modernas informações sobre navegação astronómica, destacando-se, de entre esses elementos, o Regimento da Estrela do Norte e o Regimento da altura do Sol ao meio-dia com as respectivas tábuas de declinação solar ou pautas.

O Regimento da Estrela do Norte foi concebido, muito provavelmente, durante o terceiro quartel do século XV. O Regimento do Sol deverá ter sido formulado cerca de 1485, embora o recurso à observação de alturas do Sol viesse já da década de 70. Mais tardiamente surgirá o Regimento do Cruzeiro do Sul (7), teorizado como tentativa de solucionar o problema resultante do afundamento da estrela polar, aquando da passagem dos navios para o hemisfério Sul.

A determinação de latitudes no mar através do conhecimento da altura meridiana do Sol foi o método privilegiado pelos homens do mar, disso sendo testemunho o enorme número de observações registadas nos diários de bordo portugueses do século XVI e início do século XVII.

Como vimos anteriormente, a navegação astronómica baseava-se na medição de alturas, sobretudo meridianas, do Sol e de outras estrelas. Os primeiros instrumentos utilizados para esse objectivo foram o quadrante e o astrolábio náutico, aos quais se juntou, um pouco mais tarde, a balestilha. Iremos apenas ocupar-nos do segundo, aquele que, de acordo com a leitura dos textos náuticos portugueses do século XVI, foi indubitavelmente o instrumento predilecto dos pilotos para as suas observações.

O astrolábio náutico foi criado pelos Portugueses em meados do século XV, tendo por base o astrolábio planisférico, cujas origens remontam à Grécia clássica do século III AC (8). Os Árabes, que dele tiveram conhecimento através de traduções de textos gregos, desenvolveram-no brilhantemente durante os séculos VIII e IX, sendo também os responsáveis pela introdução do mesmo na Europa, através do sul de Espanha, durante o século XI. Documentos fidedignos testemunham que a utilização de astrolábios em Portugal remonta pelo menos ao século XI, pois o testamento do bispo D. Paterno revela que existiam dois desses instrumentos no seu acervo (9).

O astrolábio planisférico, fabricado normalmente em latão, era estruturalmente constituído por um disco base, vários discos amovíveis, uma rede e uma alidade. Destinava-se a solucionar problemas tais como saber a hora do dia, antever a hora de um nascer do Sol ou de um ocaso, localizar a posição de um determinado astro numa data específica, obter a altura de um edifício, etc...

Os primeiros astrolábios utilizados a bordo foram certamente muito semelhantes aos seus congéneres planisféricos. Eram os chamados astrolábios de disco (10), fabricados em latão ou madeira. A sua utilização sistemática e o estreito contacto que certamente existia entre homens do mar e fabricantes de instrumentos, ditou uma transformação gradual do astrolábio, desprovendo-o de todas as peças dispensáveis à sua utilização para fins náuticos. O resultado foi um instrumento que consistia apenas num anel graduado, numa mediclina (11) e no anel de suspensão.

Várias foram as alterações estruturais efectuadas no sentido de melhor o adequar à utilização pretendida. O formato clássico de disco maciço deu lugar ao de um disco perfurado, diminuindo-se assim o efeito do vento sobre o instrumento durante a sua utilização. Para se lhe conferir a robustez necessária para ser utilizado a bordo e um aumento de massa que melhorasse substancialmente a sua inércia, este tipo de instrumento passou a ser fundido numa liga de cobre muito próxima do latão, sendo deixado compacto o interior da extremidade inferior da roda e procedendo-se, simultaneamente, ao aumento da espessura da sua metade inferior. Parece-nos, no entanto, ser legítimo admitir que, em determinado momento, a utilização conjunta de astrolábios de madeira e de metal se tenha verificado. Sabe-se que Vasco da Gama transportou, em 1497, na sua viagem de descobrimento do caminho marítimo para a Índia, um astrolábio de madeira e vários de latão, e que Fernão de Magalhães, na primeira viagem de circum-navegação do globo, ter-se-á feito acompanhar por um astrolábio de madeira e seis de metal.

A mediclina rodava sobre o centro da circunferência e encontrava-se fixa por um perno que era travado na face posterior do instrumento (12). De eixo tangencial ou radial, dispunha de duas pínulas perfuradas (13) que, nesta versão náutica do astrolábio, foram aproximadas entre si de modo a facilitar o enfiamento do astro observado.

A escala, gravada normalmente no bordo da metade superior da roda, foi inicialmente graduada para a obtenção de alturas – 0°-90°-0°. No século XVI, naquela que terá sido a mais importante das alterações introduzidas, os Portugueses inverteram a escala (14), colocando o 0° sob o anel de suspensão (90°-0°-90°), permitindo ao observador ler directamente o complemento da altura do astro, ou seja, a sua distância zenital. Retirou-se assim um dos passos anteriormente necessários ao cálculo da latitude, eliminando a necessidade de subtrair de 90° a altura observada.

Como se vê, durante cerca de um século e meio o astrolábio evoluiu de forma célere, pouco conservando do seu antecessor. Julgamos ser pertinente destacar o facto de as modificações nele introduzidas desde muito cedo terem suscitado o interesse de estrangeiros, como se depreende por exemplo, de uma carta escrita em Veneza, no ano de 1517, por Alexandre Zorzi (15).

Mas, como era afinal utilizado o astrolábio náutico?

Numa pontaria feita a qualquer estrela de referência que não o Sol, o observador erguia o instrumento pelo anel de suspensão e rodava a alidade até conseguir o alinhamento visual do astro através dos orifícios das duas pínulas. O bico da alidade, que servia de ponteiro, indicava então na escala graduada o valor da altura ou da distância zenital obtida.

Nas observações do Sol, como é óbvio, não era possível fazer a mirada olhando directamente para o astro. Assim, o observador limitava-se a suspender o astrolábio de um dedo, rodando a mediclina até que os raios solares, atravessando os orifícios das duas pínulas, projectassem um círculo de luz no convés do navio ou em qualquer outra superfície preparada para o efeito. Tal como no processo descritoanteriormente, a ponta da alidade indicaria na escala o valor medido.

Uma vez que os pilot os não dispunham de um relógio que lhes indicasse o meio-dia, eram forçados a iniciar a medição da altura do Sol antes de este atingir o seu zénite, considerando como valor pretendido o indicado pela mediclina uma vez alcançada a sua posição estacionária. Este movimento ascendente/descendente da mediclina, idêntico ao de um fiel de balança, originou a expressão pesagem do Sol, atribuída a este processo.

As principais reservas apontadas à utilização do astrolábio náutico resultaram sobretudo das condições muitas vezes adversas sob as quais os pilotos tinham que operar a bordo: os balanços provocados pela ondulação, fortes ventos e/ou extrema nebulosidade. Algumas precauções eram aconselhadas, tais como efectuar as medições junto ao mastro grande do navio, onde os balanços se faziam sentir com menor intensidade, ou mesmo no porão se a pontaria pudesse ser feita através da escotilha. Quando as condições adversas persistiam durante algum tempo, os pilotos podiam sempre recorrer à navegação por estima. E faziam-no. De qualquer modo, saliente-se que os erros provocados por observações realizadas em condições precárias, na maioria das vezes, não preocupavam demasiadamente os pilotos, que sabiam poder corrigir as suas derrotas à primeira vista de terra. Aliás, em meados do século XVI, D. João de Castro provou que, mesmo em caso de mar agitado, e uma vez tomadas as precauções básicas, nunca o erro de latitude daí resultante seria superior a dois graus.

A possibilidade de se verificarem erros provocados por defeito de fabrico do próprio instrumento, encontrava-se, pelo menos a partir de meados do século XVI, de algum modo acautelada. Os construtores de instrumentos náuticos estavam sujeitos a exame prévio por parte de uma Junta presidida pelo Cosmógrafo-Mor, assistido por outros técnicos, antes de poderem iniciar formalmente a sua actividade. O Regimento do Cosmógrafo-Mor, datado de 27 de Novembro de 1592, reitera a obrigatoriedade do procedimento e incumbe este alto funcionário de fiscalizar e aprovar previamente todos os instrumentos que se destinassem a ser utilizados a bordo. Este documento consagra igualmente a existência de penas para os fabricantes de instrumentos que não estivessem oficialmente aprovados, e também para os que, embora autorizados a exercer o seu mister, não fizessem passar o seu trabalho pelo crivo examinador do Cosmógrafo-Mor.

O astrolábio náutico seria utilizado por Portugueses e Espanhóis até ao início do século XVIII, demonstrando que a experiente utilização que dele faziam lhes era suficiente. Os Ingleses, Holandeses e Franceses, chegando mais tarde aos oceanos do mundo eram de natureza mais experimental e introduziram novos métodos e instrumentos para ultrapassar a sua falta de experiência (16). De facto, as restantes nações europeias começaram ainda cedo a preterir o astrolábio a favor da balestilha e, mais tarde, do quadrante de Davis. No caso dos Holandeses, como exemplo, o fornecimento de astrolábios aos navios da V.O.C. (Vereenigde Oost India Compagnie – Companhia das Índias Orientais), terminou em 1670, argumentando-se que eram caros, pouco práticos e não tão precisos quanto a balestilha.

Hoje, dos setenta e oito astrolábios náuticos conhecidos, quinze são de origem ibérica (17) e vinte e nove são portugueses. A sua origem é identificável pela assinatura do fabricante, por marcas neles inscritas ou pelo facto de serem graduados para distâncias zenitais e não para alturas.

Os três últimos exemplares a serem trazidos trazidos ao nosso conhecimento foram recuperados por equipas de arqueologia subaquática do IPPAR/EXPO'98, ao largo de S. Julião da Barra – Lisboa, numa área com menos de 600 m2.

Foram designados provisoriamente por S. Julião da Barra I, S. Julião da Barra II e S. Julião da Barra III (18).




São Julião da Barra I

O São Julião da Barra I encontra-se bastante danificado pela abrasão sofrida em contacto com as areias ao longo de vários séculos. Não possui anel de suspensão embora um dos pinos de fixação se mantenha no seu lugar. Possui ainda a alidade, já muito desgastada e sem qualquer uma das pínulas de pontaria.

Este instrumento apresenta a particularidade de conter três rebites aplicados na roda. Um situa-se no topo, ligeiramente à esquerda do raio superior, e os restantes no seu lado direito, no vértice exterior da face. Pela sua disposição, que se nos afigura perfeitamente aleatória, julgamos terem sido colocados pelo seu fabricante apenas com o intuito de cobrir simples poros de fundição

A forma do seu lastro, ou seja, do seu intradorso inferior, é idêntica à de outros vinte e dois astrolábios náuticos conhecidos. Dezassete são portugueses, dois espanhóis e três de origem desconhecida. Não obstante, se nos centrarmos na análise das suas restantes características, este exemplar revela-se algo atípico. Os astrolábios que conhecemos com diâmetros entre 167 e 170 mm foram fabricados entre 1616 e 1648 mas apresentam pesos entre 2438 e 3082 g. Por outro lado, aqueles cujo peso se situa entre 1690 e 1945 g foram fabricados entre c. de 1550 e c. de 1600 (excepto um exemplar francês datado de 1632), mas têm entre 175 e 192 mm de diâmetro, assim como uma estética completamente diversa da do exemplar em apreço.

Não são visíveis quaisquer marcas, escalas ou nomes. Ainda assim, levados apenas pelo aspecto estilístico do instrumento, pensamos dever tratar-se de uma peça fabricada entre o último quartel do século XVI e o primeiro quartel do séc. XVII.

O São Julião da Barra II está, de igual modo, muito danificado pela abrasão sofrida. Não dispõe de anel de suspensão e apenas a placa central da alidade subsistiu, entre o seu eixo de fixação e a roda. A alidade ter-se-á perdido já em submersão uma vez que, nas fotografias obtidas imediatamente após a recuperação do astrolábio, era ainda visível, sobre as concreções existentes no lastro, a marca deixada por meia mediclina.




São Julião da Barra II

Os trabalhos de limpeza e estabilização deste exemplar, trouxeram à superfície um conjunto de pormenores de extraordinária importância para a determinação das suas origem e data de fabrico. De facto, na face dos dois quadrantes superiores podemos constatar a existência de uma escala graduada para obtenção de distâncias zenitais, o que desde logo, indicia uma origem de fabrico portuguesa. Refira-se a título complementar que, de todos os astrolábios náuticos com este tipo específico de graduação, o S.J.B. II é apenas o quarto que conhecemos apresentando as punções dos 5° e das dezenas de graus no mesmo plano da escala e não em planos intercalados (19).

Sob o eixo de fixação da alidade podem distinguir-se as linhas de afinação da roda, partindo em direcção a cada um dos quatro raios.

Os raios longitudinais e o raio superior alargam na ligação com a roda, configurando uma moldura de desenho idêntico ao de outros dezanove astrolábios náuticos, fabricados entre 1540 e 1650 (20). Um tão largo intervalo temporal permite-nos afirmar que, embora estejamos perante uma preocupação estilística, o pormenor em análise não consubstancia qualquer moda atribuível a um período específico.

O raio inferior abre-se em semi-círculo até à roda, formando o lastro do instrumento (21). Sobre esse semi-círculo podemos descortinar parte de uma circunferência. Trata-se de um motivo muito característico observável em catorze outros exemplares (22).

Um outro pormenor bastante curioso, detectado após a limpeza do São Julião da Barra II, é o da existência de um corte que secciona em diagonal o arco inferior direito. Parece-nos apresentar um traço demasiado regular para poder ter sido provocado por uma pressão externa que tivesseconduzido à fractura. Salvo melhor opinião e até terem sido efectuadas as necessárias análises metalográficas, a hipótese que nos parece mais credível é a de se tratar de uma falha no enchimento do molde. Se, por verificação de alguma circunstância anómala, o percurso descendente do metal liquefeito no interior do molde tiver sido parcialmente interrompido, os dois extremos do circuito terse ter-se-ão encontrado a temperaturas distintas o que, em consequência, terá impossibilitado a sua mistura no momento da junção, embora, em situações desta natureza, as duas superfícies se moldem recíprocamente deixando entre sí apenas uma fissura.

Este astrolábio encontrava-se a cerca de 7,5 m do São Julião da Barra III e no mesmo contexto arqueológico (23). Não sendo possível datá-lo por referência epigráfica nem estabelecer uma correlação segura entre os dois instrumentos, julgamos não ser de excluir a possibilidade de terem pertencido ambos à palamenta de um mesmo navio, o que nos indicaria uma data de fabrico certamente entre o último quartel do séc. XVI e os primeiros anos do séc. XVII (24).

O São Julião da Barra III é um magnífico exemplar datado de 1605. O seu perfeito estado de conservação deve-se, certamente, ao facto de este astrolábio ter permanecido durante séculos junto de um canhão de ferro, beneficiando assim de forte protecção catódica contra a corrosão (25), de se encontrar coberto por uma laje de grandes dimensões que terá minimizado os efeitos nocivos do contacto com a areia.




São Julião da Barra III

A letra “G”, gravada na extremidade inferior da face, é tida como a marca do fabricante de instrumentos náuticos Francisco de Goes (26), a quem são atribuídos outros quatro astrolábios conhecidos: Atocha III – 1605; Florença – 1608; Santa Escolástica – 1624 e Concepción C – 1632.

Os raios longitudinais e superior, em cruzeta simples, unem-se de forma linear, isto é, sem qualquer espécie de moldura, ao intradorso composto por arcos concêntricos. O raio inferior abre-se em semicírculo até à roda e é nessa superfície que podemos distinguir a data de 1605, enquadrada por quatro estrelas de seis pontas, idênticas às observáveis no Atocha III (27), igualmente datado de 1605.

A mediclina, com ponteiros decorados por dentículos bastante acentuados, é fixa por um pino de rosca que, por sua vez, se encontra trancado por uma porca de borboleta. As suas características específicas inserem-se dentro dos parâmetros habituais para a época, embora as duas pínulas, perfuradas para observações solares solares, se encontrem um pouco mais afastadas entre si do que a distância média verificada noutros exemplares deste período, que é de 60 mm.

O anel de suspensão assenta num curioso duplo sistema basculante de eixos ortogonais. Observável em exemplares fabricados entre 1563 e 1648, este processo terá sido desenvolvido de modo a permitir uma maior flexibilidade do conjunto, assegurando assim alguma autonomia da roda face a pequenas oscilações verificadas durante a sua utilização.

A sua escala, puncionada nos dois quadrantes superiores, encontra-se graduada para medição de distâncias zenitais. O ponto correspondente aos 0° encontra-se marcado com um “I”, no que não é exemplo único deste período (28).

A descoberta do S.J.B. III constitui uma extraordinária contribuição para o estudo do desenvolvimento deste tipo de instrumentos. Não porque este astrolábio náutico, em si, apresente qualquer pormenor que possamos classificar de revolucionário, mas porque, com a sua recuperação, se obteve a possibilidade de comparar dois exemplares fabricados no mesmo ano e pelo mesmo autor.




São Julião da Barra III - Vista lateral

"...y lo que saben lo deven a los Portugueses, que los an instruydo, y sacado a navegar en alta Mar y en Provincias remotas: A los quales porque concluyamos, tambien les deve no solo España pero toda la Europa la reductiõ del Astrolabio, de que usaron siempre los Antiguos, para conocer el movimiento delas estrellas: al uso y arte del navegar, que a sido una invenciõ tal, qual los efectos, que de elle se han seguido; testifican. Conforme a lo qual sacaron tambien las cartas de marear para descubrir la latitud de los lugares de que oy usan los navegantes, cosa de grande ingenio con el qual si como hallaron el modo de sacar la latitud..."(29).

"...no qual se aventuram habitualmente os Portugueses, como gente que tem mais informações de navegar que quantas nações há no mundo..."(30).

Bastante é para nós que a metade oculta do globo esteja a ser trazida à luz e os Portugueses cheguem cada dia mais e mais longe além do equador. Assim, praias desconhecidas em breve se tornarão acessíveis; pois um emulando outro lançam-se em labores e perigos tremendos (31). "...Cierto es haber sido los Portugueses los primeros que esta manera de navegar (que ahora usamos, por el altura del Sol)hallaran y usaran; y dellos los españoles la tomamos, no se los quite su merecimiento, antes les demos las gracias, y porque Cristóbal Colon y su hermano Bartolomé Colon en aqueles tiempos vivian en Portugal allende de lo que elles sabian de teoria e experiencia de navigacion, en Portugal se devieran en esta facultad de perfeccionar..." (32).


BIBLIOGRAFIA

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GUEDES, Com. Max Justo, "Àcerca de Alguns Instrumentos Náuticos (Inclusive Dois Astrolábios) Recuperados no Naufrágio do Sacramento (1668) na Bahia", Separata da Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXVIII, Coimbra, 1980, pp. 283- 300.

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TEIXEIRA DAMOTA, Alm. A., Os Regimentos do Cosmógrafo- Mor de 1559 e 1592 e as Origens do Ensino Náutico em Portugal, Junta de Investigações do Ultramar, Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, Secção de Lisboa, Nº LI, Lisboa, 1969.

WATERS, D. W., The Sea or Mariner's Astrolabe, Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, Secção de Coimbra - Nº 15, Coimbra, 1966.

Notas

(1) Luís Filipe Barreto, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber - Uma análise sociocultural, Lisboa, Gradiva, 1987, p.10.
(2) id., ibid., p.11.
(3) O conceito de experiência aplicado à náutica do século XV, deve ser entendido como resultante de mera observação e consequente tentativa de interpretação, nela não havendo lugar à experimentação.
(4) Por princípio, calcular a latitude através da altura da Estrela Polar não era complicado, pois este astro situa-se quase directamente sobre o Polo Norte. Assim, a latitude em que se situa o observador é quase correspondente à altura daquela estrela.
(5) Faseamento proposto pelo Professor Luís de Albuquerque, Curso de História da Náutica, Coimbra, Livraria Almedina,1972, pp. 36 a 39.
(6) Espanha - Enciso, Faleiro, Medina e Cortes; e daí a França - Jean Santogeais; e a Inglaterra - Barlow.
(7) Descrito no Livro de Marinharia de João de Lisboa. Julga-se não ter obtido grande aceitação por parte dos pilotos pois a distância polar da estrela de referência dessa constelação - a crucis- era bastante significativa, dando azo a grandes erros de cálculo.
(8) Não obstante, e para além das teorizações que sobre ele foram
sendo feitas, as primeiras descrições deste tipo de instrumento surgiram apenas no século VII.
(9) Luís de Albuquerque, op. cit., pp. 181 e 182.
(10) Vd. , Astrolábio marítimo desenhado pelo cartógrafo Diogo Ribeiro nos seus dois planisférios de 1529.
(11) Também designada por alidade.
(12) Ainda no século XV, a fixação do eixo foi feita por um pino que, pela sua configuração, seria designado por cavalo. Mais tarde, e definitivamente, a fixação passou a ser efectuada por uma "porca de orelhas" ou borboleta.
(13) O diâmetro dos orifícios diferia consoante o astrolábio se destinasse especificamente a observações do Sol ou de outras estrelas. No primeiro caso, os orifícios eram bastante mais pequenos. O abandono do recurso a pínulas perfuradas para observações não solares, verificado durante o século XVI, poderá estar relacionado com a preferência dada à balestilha para este efeito específico.
(14) Vd. Rodrigo Çamorano, Compendio del Arte de Navegar, Sevilha, p.28.
(15) Vd. Leite de Faria, Francisco et Teixeira da Mota, A., Novidades Náuticas e Ultramarinas Numa Informação Dada em Veneza em 1517, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Centro de Estudos de Cartografia Antiga, Secção de Lisboa, Nº XCIX, Lisboa, 1977, pp. 16 a 25. Neste documento podemos encontrar a mais antiga das representações de um astrolábio náutico, até hoje conhecida.
(16) Alan Stimson, The Mariner Astrolabe, H&S, Utrecht, 1988, p.42. (Reportando-se a Max Justo Guedes - Vd. Bibliografia).
(17) O seu estado estrutural e/ou a ausência de marcas não permite determinar com exactidão se a sua origem de fabrico é portuguesa ou espanhola.
(18) Aos astrolábios náuticos hoje conhecidos foi atribuído o nome do seu fabricante, do local do achamento, do navio em que se encontravam ou do local em que se encontram expostos.
(19) Os outros três exemplares a que nos referimos são portugueses e designados por Dundee, Aveiro e Atocha I, datáveis de 1555, 1575 e c. 1600, respectivamente.
(20) Dezasseis deles são portugueses.
(21) Utilizando o mesmo desenho de lastro conhecem-se vinte e três exemplares. Dezassete são portugueses, dois espanhóis e os restantes quatro de origem desconhecida.
(22) Doze portugueses e dois espanhóis.
(23) Vd. Artigo específico neste catálogo.
(24) Em relação ao número de astrolábios existentes a bordo de um navio, as prospecções efectuadas no âmbito de actividades subaquáticas - responsáveis pela maior parte das recuperações efectuadas - têm-nos revelado dados importantes: Os trabalhos efectuados por caçadores de tesouros nos destroços da Nuestra Señora de Atocha, naufragada ao largo da Florida em 1622, resultaram na obtenção de cinco exemplares (quatro desses astrolábios náuticos são de fabrico português. Dois deles, o Atocha III e o Atocha IV fazem parte da colecção existente no Museu de Marinha, Lisboa - a maior colecção no mundo, reunindo seis astrolábios náuticos e dois planisféricos); a intervenção, esta sim, da arqueologia subaquática, no V.O.C. Batavia, naufragado em Morning Reef - Houtmans Abrolhos, em 04 de Junho de 1629, quatro exemplares (um deles, de fabrico português); na Nuestra Señora de la Concepción, naufragada nos Baixos da Prata, a norte da República Dominicana, em 1641, três exemplares (todos de fabrico português), recuperados por caçadores de tesouros; e num dos navios que integrava a frota que se perdeu em Padre Island, na costa do Texas, em 1554, três exemplares (dois de fabrico português e um outro de fabrico, provavelmente, espanhol), também estes resultantes da intervenção de caçadores de tesouros.
(25) Foram encontrados a apenas 32,5 cm de distância. Note-se a fina camada de óxidos de ferro existente na sua face posterior.
(26) Família portuguesa de fabricantes de instrumentos náuticos, da qual se conhecem referências específicas a Francisco de Goes (Doc. de 1587), Agostinho de Goes Raposo (Doc. de 1630) e João de Goes (Doc. de 1658). Vd. Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos dos Portugueses nos Séculos XVI e XVII, Parte I, Academia Real das Ciências Lisboa, 1988 (?), pp. (?). Conhece-se ainda um Manuel de Goes, autor de lições de Astronomia em 1582, que poderá ter pertencido a esta família.
(27) Colecção existente no Museu de Marinha - Lisboa.
(28) Dos dez exemplares que se conhecem com esta característica, nove são datados do primeiro quartel do século XVII.
(29) Thome Cano, Arte Para Fabricar, Fortificar Y Aparejar Naos, (Diálogo I), Sevilha, Casa de Luís Estupiñam, 1611, p.6.
(30) Joseph de Acosta, Historia Natural Y Moral de las Índias, 1590, México, Ed. O'Gorman, Liv.I, Cap.5, pp.50-51. Citado por Luís Filipe Barreto in op. Cit..
(31) D. Pietro Martire d'Anghierra, Obra não especificada, 1493. Citado por Daniel J. Boorstin, Os Descobridores, Lisboa, Círculo de Leitores, s.d., p.141.
(32) Bartolomeu de las Casas, História de las Índias, Livro I, Cap. XIX.

José Picas do Vale



Fontes:
Texto e fotos de arquivo do autor do blogue; gentil cedência de texto e fotos do autor do artigo, Dr. José Augusto da Costa Picas do Vale, publicado na revista n.º 13 da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval;


mls

20 abril 2020

As Alcunhas dos Navios


"Por este nome se conhecem"...

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 8 de Maio de 2010)


O Comandante Carlos Alberto da Encarnação Gomes, publicou ao tempo a criativa e inovadora compilação «Por este nome se conhecem – As alcunhas dos navios». Foi resultado de um notável trabalho de investigação, reflexo do senso crítico histórico, fino chiste humorístico, usos e costumes dos homens do mar como refere na sua “Introdução”:




...A ideia para a elaboração da presente compilação ocorreu-me quando, recentemente, ao consultar uns documentos do século XVI, me deparei com a existência de duas naus referenciadas que indubitavelmente, seriam as respectivas alcunhas, na circunstância a nau "Cu de Chumbo" e a "Nau do Surdo"...

Numa edição da Comissão Cultural da Marinha, 2010, é também uma invulgar publicação que inclui alguns “epítetos” de todos conhecidos, em franca consonância com alguns navios Reserva Naval – unidades onde serviram aqueles oficiais – de que transcrevemos alguns exemplos:



Bela Actriz – Alcunha atribuída à Lancha de Ficalização Pequena NRP «Bellatrix» que, desde 1961, prestava serviço na Guiné. A alcunha é um claro trocadilho do nome e resultou da reacção peculiar adoptada na sequência de um ataque sofrido, reacção essa que, alguém ao tomar conhecimento do sucedido, terá dito ter sido uma representação, digna de uma boa actriz.




A LFP «Bellatrix» navegando no rio Cobade, na Guiné



Branca de Neve – Alcunha atribuída à Lancha de Fiscalização Pequena, NRP «Deneb» que, desde 1961, se encontrava na Guiné. A alcunha, claro trocadilho do nome, foi-lhe posta quando, após uma reparação, a pintura exterior, usualmente verde acastanhado escuro, surgiu bem mais clara que a das outras lanchas.




A LFP «Deneb» navegando na Guiné, não ostentando então a brancura que a alcunha sugere



Gina – A Gina é, sem sombra de dúvida, a alcunha mais popular, nos dias de hoje, de qualquer navio português e o seu conhecimento vai muito para além do meio da Marinha de Guerra. A fragata NRP “Pero Escobar”, ao serviço desde 1957, foi construída em Itália e apresentava, quando comparada com os restantes navios da Marinha de Guerra, uma elegância de formas assinalável, facto esse que levou a que o associassem à actriz de cinema Gina Lollobrigida, também ela italiana e igualmente bem elegante de formas, A actriz em causa, quando tomou conhecimento deste facto, fez oferta ao navio de uma fotografia sua com dedicatória, fotografia essa que hoje se encontra no museu da Marinha.



A "Gina", sem dúvida a alcunha mais conhecida de um navio.



"Velha Senhora" – Alcunha, posta na Guiné por volta de 1971, ao NRP “Lira”. O navio era, então, o que se encontrava em piores condições, de propulsão, armamento e até de aspecto exterior, Apesar destas limitações o navio continuou, durante ainda um largo período de tempo, a manter a actividade operacional tal como se estivesse novo.



A "Velha Senhora", navegando na Guiné.



Estas são apenas algumas de entre as mais de 600 alcunhas que figuram na edição publicada.

Como informação adicional e utilizando as alcunhas que ganharam, a Bela Actriz, a Branca de Neve e a Velha Senhora efectuaram todo o seu tempo de vida operacional no teatro da Guiné, na Guerra do Ultramar, entre os anos de 1961 e 1974, tendo a última integrado a “Incrível Armada” para Angola. A Gina, embora pontualmente, também lá aportou com cadetes da Reserva Naval em viagem de instrução.

Sem a pretensão de traçar qualquer perfil pessoal ou militar do Comandante Encarnação Gomes, foi singular o paralelismo entre parte da sua carreira de Oficial dos QP e o de muitos Oficiais da Reserva Naval.

Assim:

Em 1965/66, na Guiné, desempenhou as funções de Oficial Imediato do DFE 10 - Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 10, um tipo de unidades onde sempre desempenharam missões oficiais da Reserva Naval;

Em 1967/69 foi o primeiro Comandante Lancha de Fiscalização «Dom Jeremias», lugar desempenhado posteriormente por vários oficiais da Reserva Naval;

Em 1971/73, ainda na Guiné, foi Comandante da «Velha Senhora», a LFG «Lira», um dos 10 navios com fundamentada memória histórica, em que os oficiais imediatos foram maioritariamente da Reserva Naval;

Aqui deixo expresso o meu público agradecimento pela simpatia e amizade demonstradas bem como a elevada apreciação pelo trabalho realizado.


Fontes:
Por este nome se conhecem (As alcunhas dos navios) - Carlos Alberto da Encarnação Gomes, Edições Culturais da Marinha, 2010; Setenta e Cinco Anos no Mar, Comissão Cultural da Marinha, Vols 15.º e 16.º, 2004/2005; Imagens de arquivo do autor do blogue com cedências de origens diversas;


mls

19 abril 2020

Esperança renovada em pandemia terminada...


Um Reserva Naval com Esperança renovada numa pandemia terminada...





Nesta fase do nosso percurso de vida tudo nos parece muito negro.

Pessoalmente, utilizando linguagem de Fuzileiro na Marinha, vou ensaiando umas nomadizações entre a sala de jantar, o quarto ou a cozinha, mas não saio do perímetro da unidade há mais de um mês, salvo uma surtida ao supermercado da esquina para comprar umas rações de combate.

Será mesmo linguagem de fuzileiro?

Talvez não, mais de antigo combatente que julgo termos sido todos os que penaram lá na Guiné, mas também em Angola ou Moçambique, a brincar às escondidas com o PAIGC ou amigalhaços de outros teatros de conflito.

Julgo que ali o jogo era bastante mais frontal, por vezes a dar para o torto quando menos se esperava, com algumas evacuações para o hospital ou, bem pior, para o Velho Continente, sabe Deus em que condições e para que moradia...os caixotes também eram em madeira.

Verdade seja que, entre passear num andar de cimento armado alternando a cozinha com a sala de jantar ou fechado dois anos num navio, qual lata de sardinhas como eram as lanchas em que navegávamos protegendo outros e defendendo a soberania portuguesa naquelas terras, fossem elas LFG, LFP, LDG, LDM ou LDP, nem representa grande diferença.

Aqui ainda temos algum apoio familiar, mas então lá, no outro lado do mundo, só nos fazia mesmo companhia a família militar.

Bem, depois ao virar da esquina, que é como quem diz uma curva do rio Cacheu, do Cumbijã ou noutro qualquer percurso de norte a sul, podíamos topar com os nossos anfitriões do PAIGC, sempre hospitaleiros...dassseeee!, a treinar na carreira de tiro, para o que utilizavam a orla da mata visando o rio e as lanchas, treinando tiro ao alvo para ajuizar da qualidade da chapa balística montada nas lanchas, testando a máscara de protecção.

Para isso dispunham de equipamento diversificado que do canhangulo no início, ao armamento ligeiro (AL), metralhadora pesada (MP), canhão s/recuo (CS/R) ou o mortífero RPG 7, valia tudo.

E, meu, Deus que efeito o deste último brinquedo, no final já mesmo adicionado pelos sofisticados mísseis.

Lá, sabíamos quem era o inimigo, onde normalmente se acoitava e que armamento contra nós utilizava. De forma idêntica, podíamos combatê-lo e dispúnhamos de armamemnto eficaz.

Agora o desconhecimento é quase total e tudo podem ser armadilhas, desde o simples respirar, à conversa ou a acabar no espirro.

O punho da porta da escada, o botão do elevador, notas ou moedas, enfim um mundo completo de picadas minadas para os mais incautos.

Cuidem-se, porque não sabemos o quê, onde, como, porquê e quando.

Sobretudo não saiam do vosso aquartelamento e quando sairem protejam-se de acordo com as normas da DGS-Direcção Geral de Saúde.

Esperança renovada em pandemia terminada!


MLS
1TEN RN, 1965-1972
Guiné, LFG «Orion» 66/68




LFG/LFP - Lancha de Fiscalização Grande/Pequena
LDG/LDM/LDP – Lancha de Desembarque Grande/Média/Pequena




Em 20200417 Alegria Faustino, Furriel Enfermeiro, 3.ª Comp.Bat.4514, Guidage e Jemberem comentou:

Excelente! Sigamos o que aprendemos: ordem, disciplina, obediência, reabastecimento e aprovisionamento da dispensa, racionamento comedido naquilo que comemos e bebemos, tudo com rigor militar. Duas saídas ao hiper, uma volta ao perímetro da vila, de automóvel, sem parar e de novo a casa até ao dia seguinte. Uma das vantagens da desertificação da raia transmontana nordestina é dar uma volta à vila e não encontrar ninguém, mesmo durante o ano e nesta nova era de confinamento.
Minha filha, enfermeira, faz turnos de 14 horas, dia sim, dia não, no Centro de Saúde local, na área Covidd 19, protegida com viseira, máscara, touca, luvas e bata. O concelho tem seis casos, um deles, já recuperado. Não há sinais de infectados, nem nos lares, nem na Misericórdia local e suas respostas sociais. Como a ti, confinado, a Guiné está presente, assim como o que teve de bom e positivo para todos nós, ao lado das memórias mais tristes e pesadas que recordamos diariamente.
Esqueci de referir que o meu genro, GNR, faz três turnos seguidos de 12 horas, com o descanso que se impõe, seguindo o estabelecido pelo seu Comando, equipado com viseira e máscara.
Um abraço, camarada, amigo e marinheiro.

MLS respondeu:

Honrosos exemplos familiares!
Um abraço, camarada, amigo e veterano...




Fontes:
Texto e foto de arquivo do autor do blogue;


mls

18 abril 2020

LDM - Lanchas de Desembarque Médias, classe 500


Guiné, LDM-Lanchas de Desembarque Médias, Classe 500

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 29 de Abril de 2010)






Fontes:
Setenta e Cinco Anos no Mar, Comissão Cultural da Marinha - 17.º Vol, 2006; fotos de arquivo do autor do blogue, com cedências da Escola de Fuzileiros e Revista da Armada;


mls

17 abril 2020

LDM - Lanchas de Desembarque Médias, classe 400


Guiné, LDM-Lanchas de Desembarque Médias, Classe 400

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 27 de Abril de 2010)






Fontes:
Setenta e Cinco Anos no Mar, Comissão Cultural da Marinha - 17.º Vol, 2006; fotos de arquivo do autor do blogue com cedências da Escola de Fuzileiros e Revista da Armada;



mls

12 abril 2020

Angola, 1973 - A corveta "Augusto Castilho"


Angola, 1973 - A corveta "Augusto Castilho" em fiscalização costeira

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 1 de Agosto de 2010)


No frame inicial, o filme apresenta como título “Angola Fiscalização F 480”, o que indicaria erradamente a fragata “Comandante João Belo” como sendo o navio participante nesta reportagem efectuada em Angola, no ido ano de 1973.




A corveta «Augusto Castilho»

Na realidade, a unidade naval focada na peça é a corveta «Augusto Castilho» – F 484, o que pode ser confirmado pelo nome, pelo número de costado e por diversas características do navio visíveis no decorrer do filme. As próprias fitas dos bonés dos elementos da guarnição são disso um testemunho.

Ao largar do cais das INIC – Instalações Navais da Ilha do Cabo podem ver-se atracadas, no mesmo cais, uma LFG – Lancha de Fiscalização Grande da classe «Argos» e um navio-patrulha da classe «Cacine».





Fontes:
Cópia de filme gentilmente cedida pela Escola de Fuzileiros, a partir de película rodada, ao tempo, com a colaboração da Marinha; foto da Revista da Armada;


mls

07 abril 2020

LDM - Lanchas de Desembarque Médias, classe 300


Guiné, LDM-Lanchas de Desembarque Médias, Classe 300

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 20 de Abril de 2010)






Fontes:
Setenta e Cinco Anos no Mar, Comissão Cultural da Marinha - 17.º Vol, 2006; fotos de arquivo do autor do blogue com cedência de origens diversas incluindo o Arquivo de Marinha e Revista da Armada; referências de construção retiradas de http://www.globalsecurity.org/military/systems/ship/lc.html


mls

LDM - Lanchas de Desembarque Médias, classe 200


Guiné, LDM-Lanchas de Desembarque Médias, Classe 200

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 18 de Março de 2010)






Fontes:
Setenta e Cinco Anos no Mar, Comissão Cultural da Marinha - 17.º Vol, 2006; fotos de arquivo de Abel de Melo e Sousa cedidas ao autor do blogue;


mls

06 abril 2020

LDM - Lanchas de Desembarque Médias, classe 100


Guiné, LDM-Lanchas de Desembarque Médias, classe 100

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 10 de Abril de 2010)






Fontes:
Setenta e Cinco Anos no Mar, Comissão Cultural da Marinha - 17.º Vol, 2006; fotos de arquivo da Revista da Armada e Escola de Fuzileiros, cedidas ao autor do blogue; referências de construção retiradas de http://www.globalsecurity.org/military/systems/ship/lc.htm.


mls

05 abril 2020

Memórias do 13.º CFORN - Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval


Memórias do 13 º CFORN, 1968

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 5 de Maio de 2010)


Fazer uma caminhada pelo tempo que passou, sinto-o, é cada vez mais fácil; e, se acaso estivermos em grupo, é altamente compensador. Ao pedirem-me para procurar relatar um ou outro caso, simpático, em que estivessem envolvidos os jovens cadetes do 13º CFORN, não demorou muito a que as imagens aparecessem, depois os sons e, depois também, a saudade.

Mas, dentro do 13º CFORN, havia o 21º Curso de Fuzileiros (FZE), o qual se desenvolvia no chamado 2º ciclo do CFORN. Abordarei este em primeiro lugar.

O 21º Curso FZE era constituído por jovens oriundos de dois dos três vértices do arquipélago, grande parte dos quais já licenciados e, por isso, com experiências de vida bem diferenciadas.

A uni-los, o espírito de grupo e uma bem cuidada oposição aos instrutores, passando esta pela liderança dos mais velhos.

E, pelos instrutores passava, o terrível Xavier (o papá Xavi, nosso camarada já falecido, a quem aqui deixo expressa sentida homenagem). O então 2TEN Xavier, grande, desembaraçado, invariavelmente com uma ofensiva na mão, procurava em todas as suas deambulações pelo campo de batalha, deixar referência quanto aos especiais cuidados pelos quais se deveria reger a actuação dos Fuzileiros e quanto às tácticas a adoptar perante o Inimigo (o IN, todos se lembrarão da sigla).

1.º Mandamento:



...e, os alunos depressa entendiam a força do mandamento, pois caso não fosse praticado, chovia granada. As caminhadas pelas agrestes cotas da serra da Arrábida eram extremamente árduas e comum a distância a pique do mar.

Mesmo para a juventude de então, seria penoso procurar o meandro de estrada mais aconselhado para atravessar o alcatrão. Então que fazer? Cumprir o mandamento ou debandar com as granadas que cairiam sobre nós? Não, o melhor seria confiar numa alternativa de carácter técnico, talvez proveniente da tradicional criatividade que teimosamente nos vai acompanhando ao longo dos tempos...

Assim, o comandante do destacamento mandou cortar vários arbustos e dispô-los tipo brecha, perpendicularmente à estrada (recentemente vim a saber que a vegetação era do tipo paraclimático. Naquela altura parecia-me mais do tipo rasgante, tal o modo como se manifestava à nossa passagem. Feita a abertura, todo o destacamento atravessou em segurança!... Os instrutores não se manifestaram perante tamanha ousadia! O pior foram os minutos seguintes…

2.º Mandamento:



...os alunos entenderam; mas, o limite do seu pensamento ia mais longe e, à cautela, procuraram dar uma olhadela pela escala do oficial de serviço e saber quando é que estaria de serviço o tenente Xavier.

Vista a escala, constatámos não dispor de muito tempo para criar defesas…dois dias era muito pouco e, ainda não tínhamos completado o Manual de Minas e Armadilhas… Ninguém tinha dúvidas que o Xavier iria ao nosso alojamento (à tabanca,lembram-se?), sobressaltar o nosso tão merecido e querido descanso…

A imaginação circulou de mente em mente e, a umas quantas horas do anoitecer, já a braçadeira do oficial de serviço se procurava ajustar ao braço do Xavi, o grupo tinha encontrado as contramedidas: primeiro, dois baldes de lodo; depois, uma ligação por fio entre a porta de entrada na tabanca e o grande extintor que lhe ficava três metros à frente; por último, um grande quadro com letra bem desenhada expressando o seguinte: os Fuzileiros, frente a uma tabanca IN, (o nosso 2.º Mandamento)...

Os baldes de lodo ficariam por cima das portas de acesso aos cotes e o dito, ao ser colocado, vinha fresquinho; por sorte, um encontrava-se recheado com uma gaivota que havia praticado o seu último mergulho. Tudo preparado por altura do recolher. De momento, restar-nos-ia apenas aguardar que a noite avançasse e que o Xávi deixasse largar os seus impulsos…

O que aconteceu por volta das duas da manhã foi magnífico!... A porta abre-se, a luz acende-se e…um silvo diz-nos que a primeira armadilha havia sido accionada, acompanhado de um Oh! a confirmar os efeitos. Em paralelo, o grande quadro lembrava que um princípio táctico havia sido violado por um Fuzileiro Especial; porém, o momento não aconselhava dar cedências ao flanco…

"Sim senhor, pá, é mesmo assim pá, vejo que estão a aprender pá" – e lá cai o balde de lodo, quando a porta do cote é aberta, certamente para o Sr. Tenente felicitar a acção dos cadetes… Ao formarmos, foi a ordem recebida, qualquer coisa nos poderia acontecer.

Nada ultrapassaria a imagem multicolor do Sr. Tenente Xavier!...

A propósito da tabanca, não seria possível a sua recuperação à época, mostrando como dormíamos, como arrumávamos o nosso uniforme de licença e o nosso equipamento de combate?... Se nada se fizer, daqui a uns anos não haverá mostra de nenhum artigo, nem se poderão medir quaisquer imagens do passado... Talvez por terem uma história muito curta, os americanos preservam tudo o que tem significado e que pertenceu a ontem. Com este procedimento manterão, no futuro, imagens que os mais antigos normalmente perdem.

Quanto ao 13.º CFORN em geral, esse era constituído por jovens provenientes do então todo nacional. Para além da grande e longa formatura nocturna, na qual os Srs. oficiais Escolinhas pretendiam saber quem havia roubado o boné do Belfas (designação também carinhosa), a qual destroçou sem sucesso para o outro lado, recordo os momentos de angústia claramente sentidos pelo «cadetame» detido por motivos escolares, no fim de semana, ao verem partir de licença e, garbosamente fardados, os outros camaradas. De facto, o teste de Organização não tinha corrido bem para uns tantos.

As imagens do passado dizem-me que alguns ocupam hoje cargos importantes, mas eu prometo levar este saber para a tumba!

Para todos um grande abraço




Hernâni Vidal de Rezende
CMG FZE - 13º CFORN




Fontes:
Texto compilado e actualizado pelo autor do blogue a partir do publicado na Revista n.º 17 da AORN - Associação dos Oficiais da Reserva Naval, Março 2004; Imagens do do autor do blogue;


mls

04 abril 2020

Guiné, 4 de Abril de 1967 - Emboscada à LFG «Lira» em escolta a um combóio naval no rio Cumbijã


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 15 de Março de 2008/reformulado em 4 de Abril de 2016)

53 anos depois - Relato de uma emboscada à LFG «Lira»




Região dos rios Tombali, Cumbijã e Cacine



Nota:

Desta acção se replica acinma acima um pequeno extracto de um ficheiro de audio obtido numa dessas escoltas, em 4 de Abril de 1967 e abaixo publicada. O local, meios envolvidos e acções de fogo são reais, com relato recreado e adaptado de acções semelhantes com várias unidades navais e em várias datas; a LFG «Orion», cuja guarnição integrei dois anos, também ostentava na ponte a placa de honra do rio Cumbijã como várias outras unidades navais. Aqui os lembramos em bloco, guarnições de unidades navais, fuzileiros, aquartelamentos e também populações civis.




Estas linhas não pretendem estabelecer qualquer analogia com algum tratado de estratégia militar e são publicadas como simbólica homenagem a todas as guarnições de unidades navais que, ao longo dos anos, isoladamente ou em grupo, em escoltas a combóios navais, foram emboscadas violentamente naquele percurso do rio Cumbijã, entre a foz e o porto de Bedanda.

Ao longo dos 13 anos de guerra naquele teatro, a Marinha com o dispositivo naval disponível que incluia LFG – Lanchas de Fiscalização Grandes, LFP – Lanchas de Fiscalizadção Pequenas, LDG – Lanchas de Desembarque Grandes, LDM – Lanchas de Desembarque Médias e também LDP - Lanchas de Desembarque Pequenas, nunca retirou de qualquer rio ou bacia hidrográfica.

Em todas aquelas unidades e missões a Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa esteve sempre presente, comandando combóios, lanchas ou ainda integrando guarnições de outras unidades navais.

Com alguns riscos calculados de anteriores percursos e alguns imprevistos, as guarnições das unidades navais, sózinhas ou apoiadas por grupos de Fuzileiros de Destacamentos ou Companhias, cumpriram a difícil missão de manter o apoio logístico e militar a aquartelamentos e populações de toda aquela área da Guiné, bastando lembrar Catió, Cabedú, Cufar, Bedanda e Chugué.

Houve outros, ainda que para o cabal desempenho dessas missões fosse necessário enfrentar o temível “Cantanhês“ (também dito “Cantanhez“) com locais de redutos PAIGC que iam ganhando nomes lendários de que lembramos Catió, Cabedú, Cafine, Cadique, Caboxanque e Darsalame, entre outros.

Homenagem extensiva aos militares daqueles mesmos aquartelamentos, pelo apoio militar efectivo que nunca regatearam mas também sem esquecer a Camaradagem e Amizade como nos receberam, lembrando igualmente a Força Aérea que representou, muitas vezes, a diferença decisiva entre um combóio passar ou não de forma segura.




A LFG «Lira» a navegar para montante do rio Cumbijã

De 1965 e até meados de 1968, o dispositivo naval no Sul da Guiné incluía o estacionamento permanente de uma LFG - Lancha de Fiscalização Grande da classe «Argos» que, por um período de cerca de 12 dias, mais dia menos dia se mantinha-se em cruzeiro na área, fiscalizando e patrulhando as bacias hidrográficas dos rios Cumbijã e Cacine, no que era coadjuvada por uma ou duas LDM.

Decorrido aquele período era rendida por uma irmã gémea, efectuando-se normalmente a rendição a meio caminho de Bissau, a que regressava com a que ia iniciar o cruzeiro, ambas atracadas parcos minutos de braço dado, trocando informações e instruções importantes, pessoal cavaqueando novidades e também entregando o ambicionado correio recebido.

Mais a Norte, uma LFP - Lancha de Fiscalização Pequena da classe «Bellatrix», em conjunto com uma LDM, efectuava a fiscalização da área nos rios Tombali e Cobade. Aquelas unidades navais, partilhavam e complementavam o dispositivo naval da área garantindo a segurança da navegação, transportes de pessoas, bens e equipamentos, apoio à população civil e forças militares. Também o abastecimento de víveres e o escoamento de produtos agrícolas eram assegurados por aqueles meios.

Aos Destacamentos de Fuzileiros Especiais (Comandante), pertencia o comando de uma unidade territorial «TU» com responsabilidade nas bacias hidrográficas, dos rios Cacheu, Geba/Mansoa/Corubal, Grande de Buba/Tombali e Cumbijã/Cacine. Para o cabal desempenho dessa missão tinha atribuído um DFE, duas LDM e uma LDP. Contudo para operações/missões de maior envergadura podia ser reforçado com outros meios.

Com a frequência que a prática demonstrava como necessária, a Marinha constituia TUs (Task Units), no caso um conjunto de unidades navais e embarcações civis, essencialmente integradas por LDM e batelões que largavam de Bissau, iniciando o percurso para Sul, com escala e horários previamente definidos para várias localidades e aquartelamentos.




No rio Cumbijã, a LFG «Lira» bate a margem com fogo Bofors da peça de vante

Normalmente a frequência era mensal. Bolama, o ponto TT (confluência dos rios Tombali e Cobade, Catió, o ponto CC (confluência dos rios Cobade e Cumbijã), Cabedu, Impungueda (que servia o aquartelamento de Cufar), Bedanda (porto interior) e ainda Cacine e Gadamael eram escalas habituais, embora alguns destes locais fossem aportados pelas LDG - Lanchas de Desembarque Grandes que, pelo seu porte e complexa manobrabilidade, não tinham acesso a todos eles.

Para comandar o combóio naquelas missões era nomeado um oficial de uma Companhia de Fuzileiros ou da Esquadrilha de Lanchas, quer dos QP ou da Reserva Naval, com uma ou duas esquadras de fuzileiros que reforçavam o dispositivo de protecção e defesa do combóio em pessoal e armamento.

Em percursos de maior risco de acções hostis, caso do rio Cumbijã, na zona do Cantanhês, a escolta integrava, nessa área de maior perigo de ataque, uma LFG -Lancha de Fiscalização Grande da classe «Argos» deslocada do habitual cruzeiro na área do rio Cacine que, por norma e como mais antigo, assumia o comando da escolta (CTU), completada pelo apoio da Força Aérea uma parelha de aviões Harvard T-6.

Naquele dia, 4 de Abril de 1967, cumprida a rota de ida sem incidentes, iniciou-se então a viagem para juzante, em postos de combate, com o apoio da aviação, rumo à confluência dos rios Cumbijã e Cobade, comboiando duas embarcações civis carregadas com arroz proveniente de Bedanda.




Rio Cumbijã, LFG «Lira» - No convés, junto à peça Bofors de vante,
os invólucros de latão espalhavam-se fragorosamente...


Tanto embarcações civis como unidades navais navegavam estrategicamente em coluna com uma LDM na testa e a outra na cauda do combóio, aproveitando a maré na vazante com os batelões encaixados a meio da coluna. Cada uma das embarcações civis levava uma guarda de fuzileiros constituída por 4 elementos. Comunicações em cima.

A LFG «Lira», em cruzeiro na área e vinda do rio Cacine para o Cumbijã para apoio e escolta ao combóio, mantinha-se interposta entre a cauda do combóio e a margem, ligeiramente caída para ré. Com cerca de um quarto de hora de navegação, para juzante, ouviu-se fogo de rajada de metralhadoras ligeiras da margem esquerda.

A LDM da frente informou serem de flagelação inimiga pela amura de BB, sem que fosse possível localizar correctamente a origem. Foram dadas instruções para manter o silêncio de fogo para que, visualmente, fossem melhor localizadas as armas, pela chama à boca, evitando manobras de diversão do inimigo com o intuito de desviar a atenção do centro de fogo principal, instalado mais a montante.

O desenrolar dos acontecimentos veio corroborar a hipótese!

Pelas características hidrográficas do rio Cumbijã, na curva frente a Cadique, delimitando um estreito canal de navegação existente, o combóio via-se forçado a navegar a uma distância de 30 a 40 metros da margem. Precisamente nessa zona, numa extensão de cerca de milha e meia, foi desencadeado violento ataque.

Quando a zona provável de origem da flagelação se encontrava no enfiamento do través do navio testa, toda a margem, numa vasta extensão de cerca de 600 metros que abarcava todo o combóio, irrompeu num fogo intenso de armas, com metralhadora pesada e ligeira, pistolas-metralhadoras e bazookas visando, sem distinção, todas as unidades do combóio.

Quase de seguida, foi desencadeado ataque de morteiro com salvas contínuas de projecteis, algumas com o tiro bem regulado, outras com enquadramento sistematicamente longo, com as granadas a deflagrar para lá de meio do rio.




No final da escolta ao combóio naval,
um avião Harvard T6 sobrevoa a LFG «Lira» pelo través de bombordo.


As unidades navais reagiram instantaneamente e, em conjunto, bateram sistematicamente com Bofors, Oerlinkon e MG 42 toda a área de ataque apoiadas pelos aviões T-6 que sobrevoavam a zona, picando em sucessão e metralhando o local de ataque.

A LFG, com máquinas a vante toda a força, interpôs-se entre o combóio e o fogo, protegendo a coluna e batendo cadenciadamente a margem com as peças Bofors de 40 mm apoiadas pelas MG 42 montadas nas asas da ponte, pelo fogo das LDM’s reforçadas pelos fuzileiros. A cadência de fogo de barragem provocava um ruído ensurdecedor e obrigava a arrefecer os canos das anti-aéreas Boffors com as mangueiras de água ligadas. Os invólucros de latão espalhavam-se fragorosamente pelo convés junto ás peças de vante e de ré.

Com alguma certeza e à medida que a navegação prosseguia, puderam contar-se diversas bocas de fogo de LGF postadas ao longo do percurso, possivelmente actuados por atiradores colocados em abrigos, bem como atiradores com armamento portátil. A intensidade de fogo e a extensão da frente inimiga permitiu estimar o grupo em mais de uma centena de homens, todos colocados junto à margem, deitados na bolanha ou em abrigos cavados. Observaram-se mesmo movimentação de alguns, dada a curta distância.




Rio Cumbijã, LFG «Lira» - Um Mar A apontador apoia a acção com a MG 42 de estibordo

De Cafal, quase simultaneamente, foi feito fogo de canhão sem recuo, embora apenas três ou quatro disparos e mal direccionados. O campo de tiro a partir daquela zona, não era tão afectado pela limitação natural provocada pela diferença de altura das marés. Seria possível vir a enquadrar, no mesmo enfiamento, todas as unidades que navegassem no local, para montante ou para juzante, oferecendo ao inimigo condições quase ideais para interditar a passagem à navegação.

Provavelmente posicionado a cerca de 400 metros do combóio porquanto se ouvia distintamente o disparo, sentia-se o sopro do projécteis passando sobre as unidades para, decorrido tempo sensivelmente igual, rebentarem na margem oposta junto à água, na bolanha.

Na foz do rio Macobum, o combóio inflectiu o rumo para a margem contrária continuando a ser batido intensamente do lado de Cadique, sobretudo com metralhadora pesada e armas ligeiras, enquanto de Cafine rompia também fogo com armas automáticas e morteiro.




Rio Cumbijã - A LFG inverte o rumo e interpôe-se entre a margem e o combóio

Entretanto a LFG, ao chegar àquela zona inverteu o rumo e manteve-se frente a Cafine, a efectuar a cobertura de protecção do combóio, voltando a fechar a cauda da coluna, batendo sistematicamente as posições do ataque e calando o inimigo pouco depois. Tinha decorrido uma longa hora e um quarto, sem quaisquer baixas mas com diversos impates nas embarcações e nas LDM’s.

Baixas prováveis no inimigo mas carecendo de confirmação.






Em cima os 2TEN RN Manuel Sousa Santos - LFG «Cassiopeia», 2TEN RN Abílio Martins Silva - LFG «Hidra» e 1TEN RN Manuel Lema Santos - LFG «Orion» e, em baixo, as respectivas Senhoras.




Num esclarecimento muito pessoal, este texto representa também uma homenagem pessoal ao nosso Camarada da Reserva Naval, 2TEN RN Jorge Calado Marques, 8.º CEORN da Escola Naval, então o oficial imediato da LFG «Lira». Já falecido, eram dele os arquivos de som - tenho a fita original gravada através das vigias de vante - que me tinha cedido sem reservas, conjuntamente com o álbum de fotos pessoal. A imprevisibilidade do destino último que lhe tolheu o percurso de vida, impediu-me de lho devolver. Cuidarei de que um dia possa encontrar local e mãos correctas.
Tínhamos agendado um almoço em Coimbra que apenas veio a ter lugar, em sua memória, em 15 de Outubro de 2011, com 3 dos 4 oficiais imediatos do mesmo curso e que desempenharam idênticas funções, no decorrer de igual período, 1966/1968 nas LFG «Cassiopeia», LFG «Hidra» e LFG «Orion».

RIP Calado Marques!




Fontes:
Texto imagens de arquivo do autor compilados apartir do Arquivo de Marinha, Coloredo, Núcleo 236A; cedência de imagens e ficheiro de audio pelos 1TEN Carlos F. Dias Souto (CMG), 2TEN RN Jorge Manuel Calado Marques e Mar A Fernando Oliveira, à época, respectivamente Comandante, Imediato e Apontador da peça de vante da LFG «Lira»; "Anuário da Reserva Naval 1958-1975", Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, Lisboa, 1992;


mls