31 maio 2018

Lisboa > Sal > Bissau, 31 Maio 1966 - O início de uma comissão de 2 anos


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 17 de Abril de 2011)


Bilhete de ida, ida simples… de volta, mais à frente se verá!


Era já noite entrada quando o robusto quadrimotor, um DC 6 da FAP, de transporte de páraquedistas, descolou rumo a nenhures… Ninguém nos tinha informado mas sabíamos de antemão que a Guiné ficava lá mesmo, em nenhures. Onde o tempo não tinha significado, a não ser na contagem decrescente para o regresso. Para trás, vida e futuro interrompidos, sonhos e planos abruptamente truncados, com alguma sorte adiados por dois anos, a prosseguir noutra vida mais à frente. Uma mão cheia de interrogações quedavam-se sem resposta.

Em linguagem informática, o meu registo de memória desta época de vida volatilizou-se. Com tanto tempo decorrido, não consigo aceder a qualquer informação, além da genérica e, quando me esforço por trazer a lume factos ou acontecimentos mais pormenorizados, nada está disponível. Não que me seja penoso, mas é-me impossível visualizar os «ficheiros» dos dias anteriores à viagem. Foram mesmo apagados.






O projeto DC-6 nasceu em 1944 como o XC-112 para as Forças Aéreas do Exército dos Estados Unidos. As Forças Aéreas pretendiam uma versão aumentada e pressurizada do C-54, com motores aperfeiçoados. Contudo, na altura em que o XC-112 voou pela primeira vez a Segunda Guerra Mundial já tinha acabado e a Força Aérea deixou cair o seu pedido.
A Douglas converteu então, o seu protótipo num transporte civil (redesignado YC-112A, o qual tinha diferenças significativas em relação aos subsequentes DC-6 de produção) e entregou o primeiro DC-6 de produção em Março de 1947. Contudo, uma série de misteriosos incêndios durante o vôo (incluindo uma queda de uma aeronave da United Airlines) colocaram em terra toda a frota de DC-6. Depois de descoberta a causa, todos os DC-6 foram modificados de modo a corrigir-se o problema, voltando a frota a voar ao fim de quatro meses no solo.
A PanAm usou aeonaves DC-6 na inauguração dos seus voos transatlânticos em classe turística, iniciados em 1952.
Em 1 de Novembro de 1955 uma bomba explodiu a bordo de um DC-6 matando 44 pessoas sobre Longmont nos Estados Unidos.
A United States Air Force passou a utilizar um versão do DC-6, denominada C-118 Liftmaster entre 1957 e 1975.






Preparativos, hora de partida, se terá sido mesmo da Portela ou do Figo Maduro, quem esteve comigo no aeroporto ou quem efectuou comigo a viagem são elementos de contorno difuso, perdidos no tempo. Perdida no tempo, está também a recordação consciente dos camaradas que se juntaram a mim nesta aventura. Se não a totalidade dos que fomos para a Guiné, lembro alguns deles do mesmo curso além de alguns outros passageiros. Talvez tenhamos voado todos mas afinal a esta distância também não é pormenor de importância.

Primeiro Lisboa e o Tejo, depois a costa. Por último, as derradeiras luzes costeiras coseram-se com o horizonte, sumidas na distância. Ficou o roncar ensurdecedor dos motores do avião, rasgando a noite naquele angustiante mergulho, rumo ao desconhecido. Uma espécie de torpor invadia-me, tolhendo-me o pensamento. Lembro-me vagamente de viajar sentado de costas para uma das janelas, por cima da asa esquerda do avião, as luzes de presença da cabine e pouco mais.




Abril 1973 - Um avião Boeing 707 da TAP estacionado na placa do aeroporto da ilha do Sal

Através da vigia, olhava o reflexo incandescente de um dos motores criado pela rotação das pás dos hélices, perguntando-me se seria normal ou se estaria eminente algum acontecimento estranho. Fiquei a saber mais tarde que era possível aos pilotos, em caso de sobreaquecimento, accionarem extintores ou desligarem mesmo um motor pouco colaborante. Tranquilidade acrescida, a transmitida por este conhecimento quarenta e cinco anos depois e, haja Deus, vivo!

Pudemos juntar ao baptismo de voo um autêntico teste de resistência auditiva, embalados aos sacolejões no bojo da barulhenta aeronave, que mais parecia um salvado da segunda guerra mundial com emissões sonoras a nível de um concerto de «hard rock». Os meus camaradas da FAP desculpar-me-ão certamente o meu desabafo pela invasão humorística daquele espaço aéreo.

Quanto a conforto de cabine, podia ter sido feito melhor pelo pessoal. Bem longe das ofertas actuais, eram bancos únicos, corridos, laterais mas em lona, viajando de frente uns para os outros, ainda que de través relativamente ao sentido da viagem. Verdade seja que podíamos conversar, ou melhor, gritar para nos fazermos ouvir, mas a vontade escasseava. Hospedeiras, nem vê-las e a farda 3B com um colarinho a simular um colar cervical, não ajudaram muito a preservar uma imagem cativante do percurso.




1972 - Vista aérea do aeroporto internacional de Bissau e arredores da pista

Depois de uma escala técnica pela ilha do Sal com desentorpecimento de pernas e cerca de nove horas e quarenta e cinco minutos depois, a ruidosa mas ainda confiável «fragata aérea» que se tinha proposto deixar-nos em Bissau, acabou por cumprir a missão. Pousámos em Bissalanca, o aeroporto internacional que servia aquele território onde, depois de aberta a escotilha de saída que melhor simulava uma entrada para o caldeirão do Asterix, tal era a baforada tórrida do ar exterior, nos aguardavam na gare alguns camaradas que espreitavam avidamente os substitutos chegados.

De pouco mais, que este quase nada, me lembro. O tempo decorrido se encarregou também de esfumar a chegada, quem estava ou não, quem me terá feito companhia no transporte utilizado para o percurso até ao início da ponte-cais ou ao Comando de Defesa Marítima da Guiné, no final da Avenida Marginal de Bissau. Este descritivo não abona muito a imagem que de mim fazem alguns camaradas e amigos em termos de memorização de nomes, factos e acontecimentos.




Em cima, uma vista aérea da zona do porto da cidade de Bissau, sendo possível ver, atracados, um NM da Sociedade Geral (CUF), uma LDG a as habituais LFG, LFP e LDM ou LDP;
Em baixo, a praça Nuno Tristão ao fundo da Av. de Portugal, junto à marginal e ao Pijiguiti




Com a imprescindível guia de marcha no bolso lá fui para a competente apresentação naquele Comando, sem qualquer instrução complementar relativamente aos ensinamentos da Escola Naval mas, para a Guiné, também não acrescentaria nada de substantivo.

Sem entrar em aspectos fantasiosos, julgo ter passado primeiro pela LFG «Orion» atracada à ponte-cais de Bissau, onde me apresentei deixando alguns pertences – malas e bagagens – para depois ter ido cumprir aquele dever militar formal, de onde necessariamente me recambiariam, com nova guia, para o navio que viria a tornar-se o meu lar pessoal durante dois anos.




1968 - O Edifício do Comando da Defesa Marítima da Guiné (antigo Edifício da Alfândegas),
aquando da visita do Almirante Américo Tomás àquele território, em momento de cerimonial


O entorpecimento mental era muito e a esta distância temporal tenho dificuldade em focar imagens e acontecimentos, sobretudo a torradeira climática onde tínhamos aterrado para ali permanecer tão alargada temporada. E utilizo o plural porque, para que não me sentisse muito só, alguém teria providenciado de que tivessem sido enviados para o mesmo local, no mesmo transporte e do mesmo curso, o 8.º CEORN, mais doze camaradas, para funções diversas.



Bissau, 1969 - Habitual panorama da asa esquerda da ponte-cais; as LFG Lira» - P 361 e LFG «Sagitário» - P 1131 estão atracadas de braço dado, com a LFP «Canopus» do lado de fora, e ainda uma LDP a ultimar a atracação a esta última

Pode entender-se esta última expressão «para funções diversas» como semanticamente optimista, já que todas elas eram missões desempenhadas na Guiné, em terra ou a navegar mas, mesmo nesta perspectiva mais abrangente, lugares em terra não tinham alicerces tão firmes quanto isso e, lugares a navegar, também podiam vir a efectuar desembarques em terra, nomeados quando necessário ou por mero voluntarismo desportivo. Sabe-o quem lá esteve e eu também tive essa experiência.

Éramos treze na ida e outros tantos regressámos. Facto concreto esse que, no futuro, me ajudou a esconjurar aquela malapata dos treze à mesa, ferrête com que geneticamente vim marcado a este mundo e que ainda hoje apavora a maioria das mesas de muitas lusas famílias. Mesmo no Clube Militar Naval, pode servir de pretexto para manter camaradas separados num almoço de convívio.

Realmente, o treze, continua a ser um número que preocupa mentes mas era de efêmera relatividade comparativamente ao «dois», referente aos anitos de comissão vividos na Guiné que, esses sim, marcavam especial importância na vida cá do indígena.

Aqui ficam registados os nomes da restante dúzia de camaradas que, solidarizando-se, comigo na LFG «Orion», ali partilhámos várias sessões de sauna, em diferentes versões de equipamento naval, ao longo de dois anos de dimensão temporal marcadamente XXL:

2TEN RN Abílio dos Santos Martins Silva, LFG «Hidra»;
2TEN RN Afonso Henriques da Costa, CDMGuiné;
2TEN RN António José Cardoso da Silva, NH «Pedro Nunes»;
2TEN RN Carlos Alberto Lopes, LFP «Canopus»;
2TEN RN Emídio Guilherme Mendes de Aragão Teixeira, LFP «Deneb»;
2TEN RN Jorge Manuel da Silva Calado Marques, LFG «Lira»;
2TEN RN José Carlos Pereira Marques, CDMGuiné;
2TEN RN Júlio Conceição Ribeiro Coelho, Esquadrilha de Lanchas da Guiné;
2TEN RN Manuel de Sousa Santos, LFG «Cassiopeia»;
2TEN RN Manuel Henrique Vieira de Sousa Torres, LFP «Bellatrix»;
2TEN AN RN Álvaro Rodrigues Quintana, Gabinete Militar do Comandante-Chefe da Guiné;
2TEN AN RN José António de Fátima Fragoeiro, CDMGuiné;





Em cima, Abílio Martins Silva, Afonso Henriques da Costa e António Cardoso da Silva e,
em baixo, Carlos Alberto Lopes, Emídio Aragão Teixeira e Jorge Calado Marques








Em cima, José Pereira Marques, Júlio Ribeiro Coelho e Manuel Sousa Santos e,
em baixo, Manuel Lema Santos, Manuel Sousa Torres, Álvaro Henriques Quintana e José António Fragoeiro.






Mais tarde, para ali foram cumprir comissões de serviço outros camaradas do mesmo 8.º CEORN. De 1968/1970, o 2TEN RN José Joaquim de Sousa Ferreira Martins, LFP «Aljezur», tendo prolongado o tempo de permanência na Marinha, veio a ingressar nos Quadros Permanentes no Serviço Especial de Hidrografia.

Ainda outros dois camaradas, da classe de Fuzileiros, após de terem optado por continuar nos Quadros Permanentes e depois de efectuado o curso de Fuzileiro Especial, já no posto de primeiro-tenente, ali desempenharam missões como Comandantes dos DFE 21 e DFE 12, de 1972/1974: os Primeiros-tenentes FZE José Manuel Matos Moniz e Adelino Carlos Mendes da Silva, respectivamente.





José Ferreira Martins, Adelino Mendes da Silva e José Matos Moniz.



Daqui os saúdo a todos, recordando especialmente os que agora já não nos permitem contar tantos. Sermos cada vez menos à mesa da vida, assume ser uma tão inexorável como alheia tendência. Parece ser pertença exclusiva de outros, em espírito por nós rejeitada para, subconsciente e prudentemente, nos mantermos fora da contagem.

Quando não enquadrados numa memória histórica colectiva, a do 8.º CEORN, acontecimentos isolados e não mediatizados, são carimbados como de relevância reduzida. Perder-se-ão inexoravelmente, caídos no caminho do tempo que a tudo relativiza e faz esquecer. Assim não devia ser porque já faltam bem mais do que aqueles de que há conhecimento.




Fontes:
Texto e fotos de arquivo do autor do blogue; Anuário da Reserva Naval, Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, Lisboa, 1992; texto da aeronave DC 6 em http://pt.wikipedia.org/wiki/Douglas_DC-6 com fotos gentilmente cedidas por Victor Barata, http://especialistasdaba12.blogspot.com/; Arquivo de Marinha; Abel de Melo Sousa, 20.º CFORN; Henrique Oliveira Pires, 11.º CFORN;


mls

1 comentário:

aragonez disse...

Meu muito caro Lema.
Lembro-me de alguma coisa a propósito da memorável viagem, ruidosa e fria, que 13 magníficos,tal onze mais dois do oceano por cima dele passando, tratámos de fazer.
Dois meses antes antes do nascimento da Karen...
Puto que eu era!
Feliz na facilidade da vida e das coisas, sem nunca se me ter apresentado a hipótese de não estar a fazer a coisa certa.
E isso talvez tenha ajudado a que,
política e imagem incorrectas à parte, ainda hoje considere que foram os dois menos complicados anos da minha vida...
Talvez por ser puto. Talvez.
Talvez por ser inconsciente, o grande antídoto para o medo. Talvez.
Mas porque me lembro de quem e como era na altura, não hesito em afirmar que se voltasse atrás tudo voltaria a ser igual.
Normalmente as mesmas causas, no mesmo enquadramento, determinam as mesmas consequências.
Dizem que o verdadeiro estúpido é aquele que espera coisa diversa da já verificada!
Não me sinto pior ou melhor por ter andado por lá aos tiros do que se sentiria o Persa depois de ter perdido a guerra contra o Grande.
Mesmo que os jornais do Irão de hoje considerassem e não consideram, o Dário como um criminoso. Vencido.
Já percebeste que estas linhas são apenas o prefácio de outras que espero escrever a este respeito.
A Pátria honrae? Talvez.
Mas cega,ninguém contempla ninguém.
Um forte abraço.
Quantos restamos dos treze?