27 janeiro 2020

Reserva Naval e Modelismo


Reserva Naval e Modelismo

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 24 de Abril de 2009)


Há meses atrás recebi uma mensagem de um cibernauta, Mário Rui Cavalleri, que procurava informações e documentação sobre miniaturas de navios da Marinha de Guerra. Sendo uma temática abordada com conhecimento e correcção, nunca ter deixado uma mensagem sem resposta mas sobretudo a mítica Reserva Naval, o apelido Cavalleri e a mais que familiar LFG “Orion”, não me deixaram margem para evasões.

Tudo porque alguém, conhecedor do blogue, terá cedido o endereço a Mário Rui que, na lista de preferências pessoais, disponibiliza grande parte do seu tempo à construção de miniaturas navais, algumas já realizadas e tendo uma outra da LFG “Orion” como projecto futuro, com a indicação complementar de poder vir a ser eu um apoio possível no fornecimento de algumas informações e imagens.

O decorrer do tempo, a troca de mensagens e o intercâmbio de informações úteis ampliaram o meu horizonte de conhecimentos, propiciando ainda o nascimento de uma amizade, fruto de valores culturais e de camaradagem com muitos pontos comuns.

Mar, Marinha, Reserva Naval e Guiné onde, bem no interior leste, em Cabuca, a sudeste de Nova Lamego, foi professor numa escola de nativos ao serviço do Exército, na CCav 3404 que integrava o BCav 3854 justificam a natural postura por mim assumida.




2TEN RN José Alvarez Cavalleri Martinho.

Não conheci de forma especialmente próxima o camarada 2TEN RN José Alvarez Cavalleri Martinho que pertenceu ao 1.º CEORN - Curso Especial de Oficiais da Reserva Naval mas também primo e padrinho do primeiro. Lamento não se ter proporcionado essa oportunidade mútua nos sempre poucos convívios de Marinha em que estando ambos presentes, ainda que de forma efêmera e por breves instantes, trocámos algumas palavras.

Tenho presentes um almoço dos 1.º e 2.º CEORN no Clube Militar Naval com o Comandante Coral Costa – Director de Instrução daqueles dois cursos, o aniversário da Associação comemorado na Escola Naval em 11 de Julho de 1998, uma Assembleia Geral no ISNG em Março do ano seguinte e pouco mais, afinal quase nada que justifique arrogar-me o direito de começar a dissertar sobre as suas qualidades humanas e profissionais.




Abaixo reproduzo na íntegra um aerograma enviado por José Cavalleri, do Sobral de Monte Agraço ao primo e afilhado, então na Guiné, escrevendo a dado passo que:

"...E por aí? Como vai essa Escola? E a situação operacional? Manda-me dizer o que puderes sem violar quaisquer normas de segurança, pois gosto de saber notícias na nossa brava rapaziada que tão galhardamente se bate aí nesse bocado de terra com mais água que terra.

Tenho outro primo aí na Guiné. É filho do meu tio José Alvarez que teus pais conhecem. Ele é Aspirante da Reserva Naval e estava comandando uma das vedetas*. É difícil que vocês contactem, pois há tanta "malta" aí que se passa despercebido..."





Mais do que valorizar palavras, esta meia dúzia de linhas transmitida numa comunicação entre familiares, testemunha uma elevada cultura Reserva Naval, ao serviço da Marinha mas também da Vida.

E, que melhor forma de recordar e homenagear um camarada da Reserva Naval encontraria eu no baú das frases feitas? Só mesmo pelo punho do próprio afilhado, também primo, nas linhas e imagens enviadas que aqui deixo:


"...
O modelismo é uma paixão, que se dá a conhecer de varíadissimas formas e temas. Lavoisier disse que “na natureza nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma!

Para mim, em modelismo, o mesmo «princípio» aplica-se na perfeição dado que, na execução de um projecto, o modelista consegue «transformar» objectos que nada têm a ver com o fim para que foram concebidos e, por «artes» do ofício, passam a tomar outra forma e outro destino ou propósito.

É a transformação...




O modelo reduzido da LDM 304

Partindo do presuposto que é um hobby de paixão, a escolha dos temas cabe exclusivamente a cada um, dedicando-se ao objecto que mais aprecia, por variadissimas razões. No meu caso, em particular, o tema preferido são os navios.

E porquê?

Desde que comecei a tomar consciência da minha existência peregrina neste mundo, que senti e sinto uma forte atracção pelas coisas do Mar no que tive, e continuo a ter, a sorte e o privilégio de viver junto a ele, Mar. Habituei-me a admirar os navios, fundeados na baía de Cascais ou a meter piloto, quando ainda permanecia fundeado ao largo o navio que procedia a esse «transbordo», o Comandante Milheiro, que só raramente levantava ferro e se refugiava em Lisboa, nos dias de tempestade ou de rendição.

Levei uma vida inteira a "ver navios" e espero ainda continuar a ver mais... este amor que me une à Instituição que é a Marinha de Guerra Portuguesa, aos seus navios mas também a alguns bons e óptimos amigos que ao longo destes anos fiz, sobreveio de laços familiares, por ter tido como padrinho de baptismo e primo, um antigo oficial da Reserva Naval, o José Cavalleri Martinho.

A ele se deve em grande parte este amor e paixão, que me faz correr água salgada nas veias e, só não tive a honra de vestir a farda do botão da âncora por outras razôes, pois se isso tivesse sido possível, ainda hoje serviria a Instituição!

Quis o destino que, de verde camuflado e de bóina com duas espadas cruzadas, tivesse sido mobilizado e prestado serviço militar na antiga Guiné Portuguesa, numa comissão de 27 meses, 7 dias e seis horas, bem contadas.

Sempre que me encontrava esporadicamente em Bissau, sentadinho no Pelicano, devorando ninhos de camarão e “bazookas”, os meus olhos "arregalavam-se" ao olhar com "amor" para as LFP e LFG mas também as LDM e LDG. Eram navios “lindos”, com umas linhas simples e elegantes, talvez um pouco barulhentas as primeiras LFP construídas na Alemanha. Refiro as da classe “Bellatrix”.



A «Bellatrix» atracada ou fotografada a meia nau, à bóia

Os anos passaram. Modelismo naval e os métodos de criar os projectos foram-se aperfeiçoando também devido ao crescente aparecimento no mercado de kits, acessórios, revistas e um sem numero de "coisas" interessantíssimas para os apaixonados da modalidade.

Há uns anos atrás, resolvi deitar mãos à obra e fazer renascer das cinzas da memória, algumas réplicas dos nossos navios. Assim, pus a navegar novamente a LFP «Bellatrix», o NRP «Nautilo», este em fase de acabamentos electrónicos de que já tenho os planos - muito suados...diga-se! - e da LFG «Orion».




A «Nuno Tristão» atracada

Mas a «jóia da minha esquadra» é uma réplica de uma corveta, que não sendo a original da classe «Baptista de Andrade», é inspirada nela mesmo. A razão deveu-se a uma opção de tamanho/escala. Como a escala escolhida é 1/35, só posso dar vida a navios com máximo de 70 metros, ou seja para a escala de 1/35 não ultrapassar os dois metros, caso contrário o problema de logística e transporte, passaria a ser uma tremenda dor de cabeça... Por esse facto, a «corveta»(?) foi baptizada de «Nuno Tristão» que, no entanto, nada tem de semelhante com a fragata »Nuno Tristão», a F 332, há muito já abatida e que também passou por águas guineenses...

No caso específico da «minha Bellatrix» trata-se de um modelo radiocontrolado, operado com um R/C Futaba, dois motores eléctricos, com faróis de navegação de comando independente e antena de radar rotativa. Simples!...




A «Bellatrix» amarrada à bóia ou a navegar

Este hobby proporciona-me um elevado estado anti-stress, relaxante quanto baste, num desafio permanente à minha imaginação e criatividade como praticante, tendo como resultado um gozo e prazer ímpares, no fazer cruzeiros com os modelos mesmo que em «imaginação» e pelo período de capacidade das baterias, atendendo ás velocidades imprimidas ao modelo e até as mesmas se esgotarem...

Inclusivamente, podem recrear-se alguns pormenores de operações levadas a cabo em acções militares, com praticantes desta modalidade e com outros modelos, como por exemplo simular acções de desembarque de LDM ou LDG, acções de patrulha e fiscalização de LFP ou LFG, etc. Tudo o que a nossa mente idealize, pode quase sempre ser revivido a uma escala mais pequena...mas que dá um «gozo» fantástico, à parte o convívio, que é sempre salutar e profícuo em troca de saberes e alguns sabores também...




A LFP «Bellatrix» no apoio ao desembarque da LDM 304 numa operação conjunta.

Estas dicas são apenas algumas para quem ainda não "saboreou" este hobby e que possa vir a ter alguma curiosidade e vontade em iniciar-se, juntando-se ao mundo maravilhoso do modelismo, onde cada projecto é um desafio e o próximo será ainda melhor!...

Espero vê-los um dia destes pelas águas ou no tarrafo da Lagoa Azul.
..."


Mário Rui Cavalleri

* Referência feita ao 2TEN RN José António Sequeira Alvarez, comandante da LFP «Arcturus» de 30Out71 a 26Mai72;

Fontes:
Imagens cedidas por Mário Rui Cavalleri.


mls

26 janeiro 2020

Reflexão vs Solilóquio?


Reflexão ou Solilóquio de Um Reserva Naval?

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 12 de Junho de 2009)





Tentado que fui a efectuar uma incursão Reserva Naval por Moçambique, esteve sempre presente no meu espírito a ideia da acrescida exposição a que me sujeitava, pela óbvia vulnerabilidade de nunca ter estado fisicamente naquele território.

Na mira, o objectivo simples de trazer a lume quem, onde e quando, da Reserva Naval da Marinha de Guerra Portuguesa, teria prestado serviço ou desempenhado missões naquele teatro de conflito.

Na suposição de poder fazê-lo com metodologia simplicada, rumei ao objectivo assegurando compilações sustentadas apenas por testemunhos ou relatos, documentação escrita e imagens, com suporte em fontes credíveis rectificadas por alguma pesquisa e verificação complementar, deixando aos investigadores, historiadores e sociólogos, futuras e complexas abordagens económicas, sociais e políticas.

Entendi assim proceder, essencialmente como um modesto contributo pessoal para uma memória Reserva Naval, dada a minha crescente afectividade a um contagiante misticismo Moçambique/Lago Niassa/Base Naval de Metangula, da “responsabilidade” de vários camaradas, quer dos Quadros Permanentes quer da Reserva Naval, incentivada e sedimentada pela via do convívio e camaradagem e também pela presença, ao tempo, de meus familiares próximos quer militares quer civis.

A pesquisa e recolha nem sempre se revelaram fáceis, por tão estranha quanto notável ausência de documentação, dificuldades na sua consulta, fontes de informação incompletas ou com gralhas. Acresce ainda uma panorâmica cultural de desinteresse quase generalizada pelo conhecimento desse passado recente da Reserva Naval da Marinha de Guerra - e não só - indissociavelmente conotado com a guerra levada a cabo nos três teatros de África.

Num horizonte temporal inexoravelmente limitado, associado ao desgaste de uma liça culturalmente pouco apelativa no imediatismo de resultados, assinalam-se efusivamente os incentivos frequentes de “quem sabe da poda” – felizmente são vários - encorajando quem faz ou a isso está disposto, mantendo alguma motivação suplementar gratificante, ainda que possam estar presentes a observação, a crítica construtiva e também a sugestão.

Importa contudo clarificar que a ausência mais notada é uma imcompreensível e empenhada participação do próprio universo Reserva Naval, necessária à construção das suas memórias históricas colectivas. Sem essa indispensável trave mestra, configurarão projectos truncados, com importantes omissões, incompletos e empobrecidos no tempo.

Pela minha parte, com o meu ritmo possível, a minha disponibilidade permanente e os meus parcos meios, aqui continuarei a divulgar retalhos Reserva Naval ao sabor do vento que não sopra de feição nesses mares.

Como dizia um camarada e amigo “... dias mais negros passamos quando partem camaradas que iniciaram a ultima «comissão». Também a nossa há-de chegar. Não há ninguém inapto. Estamos todos mobilizados...”


Fontes:
Foto da LFG «Sagitário» no rio Cacheu, cedência de Adelino Rodrigues da Costa;


mls

25 janeiro 2020

Porto Amélia – O Aquartelamento de Fuzileiros


Quartel dos Fuzileiros em Porto Amélia

Post reformulado a partir de outro já publicado em 20170316/20090607


Abaixo, num postal ilustrado da época, a península de Porto Amélia, edição da Câmara Municipal, de que era então presidente um homem dinâmico, o Sr. Tito Xavier. São visíveis a cidade e o respectivo porto, o aeroporto ao fundo e o Aquartelamento dos Fuzileiros em baixo à esquerda.



Neste aquartelamento construído pela Marinha, ficou sedeado em 20 de Novembro de 1964, o primeiro Destacamento de Fuzileiros Especiais a chegar a Moçambique, o DFE 1, comandado pelo 1TEN Maxfredo Ventura da Costa Campos, tendo como oficial imediato o 2TEN Fernando Alberto Gomes Pedrosa e como 3.º oficial o 2TEN RN António da Silva Pereira Jardim do 6.º CEORN.




Vista geral das instalações do aquartelamento de Fuzileiros de Porto Amélia na fase inicial da construção.

De 1964 a 1975, 19 Destacamentos de Fuzileiros Especiais integraram o dispositivo da Marinha de Guerra em Moçambique que, pela rotatividade periódica de locais de estacionamento, desempenharam missões em todo o território de forma idêntica, especialmente, no Lago Niassa - Metangula ou Cobué – e também em Porto Amélia. Além de outros, também o Ibo, Mocojo, Tete, Magoé Velho, e Tchiroze foram locais pontuais de actuação.

Abaixo, um painel de imagens do aquartelamento iniciado aquando da sua construção:





Vista parcial das instalações do aquartelamento





Entrada principal do aquartelamento





Bloco do edifício do Comando e instalações do Oficial de Dia visto da Avenida Marginal





Bloco do edifício do Comando e instalações do Oficial de Dia visto da Parada





Bloco da Comissão das instalações de Bem-Estar, Companhia de Equipagem e Secção do Correio





Bloco das Instalações do Sargento de Dia, Bloco Social e Secretaria do Comando





Bloco da Enfermaria, instalações da Comissão de Bem-Estar, edifício das Cobertas e Refeitório





O Serviço de Saúde do aquartelamento e Enfermaria, que apesar do aspecto modesto desempenhava actividade importante em consultas, tratamentos e, quando necessário, internamento





Bloco do Paiol do Quartel Mestre, Garagem e Central Geradora





O Refeitório





Estação Radionaval





Bloco do Serviço de Armamento e Escotarias





Muro de protecção da antena logarítmica





Torre do aquartelamento



Fontes:
Arquivo de Marinha; texto e postal alusivos, cedidos pelo 2TEN MN RN Fernando Jorge de Mendonça Lima que de 11Out67 a 26Mai69 desempenhou as funções de Chefe do Serviço de Saúde do Comando de Defesa Marítima de Porto Amélia




Manuel Lema Santos
1TEN RN, 8.º CEORN, 1965/1972
1966/1968 - LFG "Orion" Guiné, Oficial Imediato
1968/1970 - CNC/BNL, Ajudante de Ordens do Comandante Naval
1970/1972 - Estado-Maior da Armada, Oficial Adjunto

20 janeiro 2020

Moçambique, Porto Amélia - LFP «Antares» P 360


Post reformulado a partir de outro anteriormente publicado em 20090322/20170112





Fontes:
"Dicionário de Navios", Adelino Rodrigues da Costa, Edições Culturais da Marinha – 2006; Setenta e Cinco Anos no Mar, Lanchas de Fiscalização Pequenas (LFP), 16º VOL, 2005; "Anuário da Reserva Naval 1958-1975", Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, Lisboa, 1992; Texto e fotos de arquivo do autor do blogue, com fotos da Revista da Armada n.º 258, Setembro/Outubro 1993;




Manuel Lema Santos
1TEN RN, 8.º CEORN, 1965/1972
1966/1968 - LFG "Orion" Guiné, Oficial Imediato
1968/1970 - CNC/BNL, Ajudante de Ordens do Comandante Naval
1970/1972 - Estado-Maior da Armada, Oficial Adjunto

16 janeiro 2020

Guiné - Abicagens e Desencalhes


LDG «Alfange» - Guiné, 1967

(Post reformulado a partir de outro já publicado em 14 Dezembro 2016/13 Janeiro 2009)




A imagem ilustra, por si própria, o sábio conceito de que a união faz a força.

Na Guiné, os dedos das mãos não chegam para contar o número de vezes que o recurso a máquinas auxiliares foi imprescindível na correcção do posicionamento de uma abicagem ou para conseguir uma tracção suplementar num oportuno desencalhe.

Não ter de recorrer ao escoramento do navio ou da lancha, aguardando a próxima subida de maré, era já um cenário optimista.


Fontes:
Imagem cedida pelo Museu de Marinha;

mls

06 janeiro 2020

Guiné, 1971 - A Rendição da Guarda ao Palácio de Sexa o Governador, CF11


Contos e Narrativas

"Guiné - A Rendição da Guarda ao Palácio de Sexa o Governador"






A primeira semana de Guiné foi um deslumbramento. Nem se deu por ela, que o tempo passou vertiginosa¬mente, repartido entre as tarefas inerentes à instalação de uma Unidade acabada de chegar ao Teatro de Operações (TO) e as despedidas da Unidade rendida, a CF8, esmagada pela partida pregada pelo S. Gabriel, que resolveu avariar – ou era ava¬riado – todos os dias à saída da Grande Reparação a que tinha sido sujeito no Arsenal, já com a CF11 a bordo, para possibilitar, diziam as más línguas, à tripulação, feitas bem as contas, a passagem do Natal e Ano Novo em família.

As emoções vividas pela subida do Geba, a bordo do Rita Maria, navio mercante que transportou a CF11, a novidade da paisa¬gem, as LDM e o transbordo do pessoal para terra, que o Rita Maria fundeou a meia distância entre a Ponte Cais e o Ilhéu do Rei, o encontro com gente já conheci¬da, nomeadamente com oficiais do CFORN anterior, a tomada do pulso às ruas e aos costumes da cidade foram-se esfuman¬do ao correr dos dias. No fim da primeira semana a aclimatação estava, por assim dizer, perfeitamente enquadrada, já tudo parecia normal.

Bem, calma aí, que havia surpresas pelo caminho, tais como a Rendição da Guarda ao Palácio de Sexa, o Senhor Governador, operação que decorria, salvo erro mensalmente e era levada a cabo, à vez, por um Pelotão de Fuzileiros, por um Pelotão de Comandos ou por um Pelotão de Páraquedistas. Foi mesmo uma questão de pontaria, tinha de ser, calhar o Petisco aos Fuzileiros acabadinhos de chegar.

E, pois claro, à CF11. E, ora pois, ao Marinheiro E, o mais marreta dos marretas dos oficiais da Companhia, por mais estranho que isso pudesse parecer. Que só se deu conta do berbicacho quando, ao jantar de Sábado, se aproximou da mesa o Imediato da Companhia de Fuzileiros 3 e disse:

– Marinheiro E, cabe amanhã aos Fuzileiros a Rendição da Guarda. Disseram-me na sua Companhia que é você o primeiro a alinhar.

E continuou atenciosamente, que era bom homem.

– Sugiro que me acompanhe, quando acabar de jantar, para falarmos do programa a cumprir e darmos uma volta pelo trajecto a percorrer.

Acho que o Marinheiro E se atreveu a resmungar:

– Já? Então mas a CF3 sabe melhor dessas coisas do que nós...

– Sim, retrucou o correcto e paciente Imediato, mas é tarefa que comete à Unidade em Serviço Interno, o vosso caso, que a CF8 já cá não está e nós estamos no Período de Serviço Externo. Não há volta a dar.

E lá foram, o Imediato e o Marinheiro E, já noite bem entrada, de Land Rover, conversando sobre a Operação, o Golpe de Mão, sei lá, parando aqui para uma dica, mais além para outra. Dirigiram-se ao Forte da Amura, subiram a Avenida Lateral e pararam à frente do Palácio. Então o Imediato informou:

– Aqui manda Apresentar Armas para saudar as Altas Individualidades presentes, a Banda executa o Hino Nacional, manda sentido, descansar e aguarda que se consuma a rendição. Depois é só fazer o percurso inverso e destroçar novamente no Forte. Entendido?

– Sim, não me parece que seja obra de outro mundo.

E regressámos ao Quartel, como é costume dizer e era verdade, que nessa data já tínhamos tomado conta do nosso apartamento, coladinho à Messe de Oficiais, separados apenas pelo corredor de acesso a ambos. O Domingo amanheceu luminoso, como é normal naquela época do ano, ia Janeiro a meio. E também o Marinheiro E e o seu pelotão luziam, a condizer, na sua farda branca, cordão vermelho no ombro, galões e divisas a reluzir e a dar ainda mais realce à festa. Subiram para a Mercedes, caixa aberta, e desandaram para a cerimónia.

Vale dizer aqui, em nota, que os Fuzileiros tinham a vantagem de cada Unidade integrar muito pessoal já com experiência, desde marinheiros a sargentos. Foi, como se verá, uma vantagem, caso contrário, acha o Marinheiro E que ainda agora lá estava, em pose, à espera que chegassem as Altas Individualidades...

No Forte da Amura já esperava, ensaian¬do afinações e notas soltas, uma pequena Banda Militar, 12 elementos se tanto, dirigidos por um Senhor Maestro Sargento Músico.

À hora certa, dispostos em formação, iniciou-se o cortejo ao som de Marcha Militar: a Banda, o Pelotão do Marinheiro E e o Destacamento da Guarda, olhos a arregalar-se pela multidão, sempre a crescer, que ladeava e ladeou as forças em desfile. Uma festa.

Melhor dizendo, um verdadeiro ronco.





Até à frente do Palácio tudo decorreu normalmente, cheia a transbordar de gente a grande rotunda. E tudo bem. Tudo correu bem?... Bom, até ao momento de Apresentação de Armas para saudação às Altas Individualidades presentes, sim, só que o Marinheiro E não distinguiu nenhuma por entre o negrume da população e resolveu esperar pelos carros potentes que, na sua imaginação, os deviam trazer. Por isso mandou “descansar...e à vontade”.
Passados uns momentos de expectativa, tranquilos, começou a escutar as dicas nas suas costas:

– Senhor Tenente, mande apresentar armas… Senhor Tenente, mande apresentar armas...

Numa meia rotação esclareceu:

– Temos de esperar pelas Altas individualidades, não? Hão-de estar a chegar, ou nos adiantámos ou atrasaram-se...

Nas suas costas soltaram-se risotas abafadas. Pensou “ó diabo!...” Os risos cresceram, a insistência no “mande apresentar armas” também. Reparou então que o Sargento da Banda esticava o pescoço lá do fundo, à frente e à sua direita, intrigado, numa tentativa, achava o Marinheiro E, de tentar perceber o que é que se estava a passar, porque é que não se tocava o Hino. E lá ao fundo, à esquerda, também a Guarda a ser rendida dava mostras de inquietação. Foi então que um dos seus sargentos, um passo em frente, ciciou:

– Senhor Tenente, não há Altas Individualidades nenhumas. Nunca há, nunca houve. Deve de mandar «Apresentar Armas» para dar seguimento à Rendição. É assim...

E assim se fez para descanso de todos, da Banda, que tocou o Hino, e das Guardas que se renderam ao som da Marcha Militar, que só não foi a Nupcial porque não se tratava de casamento nenhum...Concluída a cerimónia, seguiu a Banda, como é costume dizer-se, caminho de regresso ao Forte ao som da mesma Marcha Militar e da população ululando à cadência do cortejo. Já no transporte para o INAB, aliviada a tensão, o pessoal, divertido, entre risos, sempre respeitosos, atirava “Hein, Senhor Tenente, então queria cumprimentar as Altas Individualidades?!... Queria era abrir a porta do carrão e apertar a mão ao Senhor Governador!... Essa gente tem mais que fazer!”...

O Marinheiro E, sorriso concupiscente, apenas dizia e era para si próprio “sim, sim, o Aires bem me ia lixando com a da saudação às Altas Individualidades ausentes”...


Marinheiro E*




*O Marinheiro “E”, de todos já conhecido, é o 2TEN FZ RN Elisio Carmona Oficial, que integrou os efectivos da CF 11 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné nos anos 1971/1972.




Fontes:
Texto e fotos já publicados na Revista "O Desembarque" n.º 28 da Associação de Fuzileiros, Novembro 2017, autoria de Mar E, Sócio Originário n.º 1542, AFZ, Oficial RN da CF11, Guiné 1971/1972;


mls