Contos e Narrativas
"Guiné - A Rendição da Guarda ao Palácio de Sexa o Governador"
"Guiné - A Rendição da Guarda ao Palácio de Sexa o Governador"
A primeira semana de Guiné foi um deslumbramento. Nem se deu por ela, que o tempo passou vertiginosa¬mente, repartido entre as tarefas inerentes à instalação de uma Unidade acabada de chegar ao Teatro de Operações (TO) e as despedidas da Unidade rendida, a CF8, esmagada pela partida pregada pelo S. Gabriel, que resolveu avariar – ou era ava¬riado – todos os dias à saída da Grande Reparação a que tinha sido sujeito no Arsenal, já com a CF11 a bordo, para possibilitar, diziam as más línguas, à tripulação, feitas bem as contas, a passagem do Natal e Ano Novo em família.
As emoções vividas pela subida do Geba, a bordo do Rita Maria, navio mercante que transportou a CF11, a novidade da paisa¬gem, as LDM e o transbordo do pessoal para terra, que o Rita Maria fundeou a meia distância entre a Ponte Cais e o Ilhéu do Rei, o encontro com gente já conheci¬da, nomeadamente com oficiais do CFORN anterior, a tomada do pulso às ruas e aos costumes da cidade foram-se esfuman¬do ao correr dos dias. No fim da primeira semana a aclimatação estava, por assim dizer, perfeitamente enquadrada, já tudo parecia normal.
Bem, calma aí, que havia surpresas pelo caminho, tais como a Rendição da Guarda ao Palácio de Sexa, o Senhor Governador, operação que decorria, salvo erro mensalmente e era levada a cabo, à vez, por um Pelotão de Fuzileiros, por um Pelotão de Comandos ou por um Pelotão de Páraquedistas. Foi mesmo uma questão de pontaria, tinha de ser, calhar o Petisco aos Fuzileiros acabadinhos de chegar.
E, pois claro, à CF11. E, ora pois, ao Marinheiro E, o mais marreta dos marretas dos oficiais da Companhia, por mais estranho que isso pudesse parecer. Que só se deu conta do berbicacho quando, ao jantar de Sábado, se aproximou da mesa o Imediato da Companhia de Fuzileiros 3 e disse:
– Marinheiro E, cabe amanhã aos Fuzileiros a Rendição da Guarda. Disseram-me na sua Companhia que é você o primeiro a alinhar.
E continuou atenciosamente, que era bom homem.
– Sugiro que me acompanhe, quando acabar de jantar, para falarmos do programa a cumprir e darmos uma volta pelo trajecto a percorrer.
Acho que o Marinheiro E se atreveu a resmungar:
– Já? Então mas a CF3 sabe melhor dessas coisas do que nós...
– Sim, retrucou o correcto e paciente Imediato, mas é tarefa que comete à Unidade em Serviço Interno, o vosso caso, que a CF8 já cá não está e nós estamos no Período de Serviço Externo. Não há volta a dar.
E lá foram, o Imediato e o Marinheiro E, já noite bem entrada, de Land Rover, conversando sobre a Operação, o Golpe de Mão, sei lá, parando aqui para uma dica, mais além para outra. Dirigiram-se ao Forte da Amura, subiram a Avenida Lateral e pararam à frente do Palácio. Então o Imediato informou:
– Aqui manda Apresentar Armas para saudar as Altas Individualidades presentes, a Banda executa o Hino Nacional, manda sentido, descansar e aguarda que se consuma a rendição. Depois é só fazer o percurso inverso e destroçar novamente no Forte. Entendido?
– Sim, não me parece que seja obra de outro mundo.
E regressámos ao Quartel, como é costume dizer e era verdade, que nessa data já tínhamos tomado conta do nosso apartamento, coladinho à Messe de Oficiais, separados apenas pelo corredor de acesso a ambos. O Domingo amanheceu luminoso, como é normal naquela época do ano, ia Janeiro a meio. E também o Marinheiro E e o seu pelotão luziam, a condizer, na sua farda branca, cordão vermelho no ombro, galões e divisas a reluzir e a dar ainda mais realce à festa. Subiram para a Mercedes, caixa aberta, e desandaram para a cerimónia.
Vale dizer aqui, em nota, que os Fuzileiros tinham a vantagem de cada Unidade integrar muito pessoal já com experiência, desde marinheiros a sargentos. Foi, como se verá, uma vantagem, caso contrário, acha o Marinheiro E que ainda agora lá estava, em pose, à espera que chegassem as Altas Individualidades...
No Forte da Amura já esperava, ensaian¬do afinações e notas soltas, uma pequena Banda Militar, 12 elementos se tanto, dirigidos por um Senhor Maestro Sargento Músico.
À hora certa, dispostos em formação, iniciou-se o cortejo ao som de Marcha Militar: a Banda, o Pelotão do Marinheiro E e o Destacamento da Guarda, olhos a arregalar-se pela multidão, sempre a crescer, que ladeava e ladeou as forças em desfile. Uma festa.
Melhor dizendo, um verdadeiro ronco.
Até à frente do Palácio tudo decorreu normalmente, cheia a transbordar de gente a grande rotunda. E tudo bem. Tudo correu bem?... Bom, até ao momento de Apresentação de Armas para saudação às Altas Individualidades presentes, sim, só que o Marinheiro E não distinguiu nenhuma por entre o negrume da população e resolveu esperar pelos carros potentes que, na sua imaginação, os deviam trazer. Por isso mandou “descansar...e à vontade”.
Passados uns momentos de expectativa, tranquilos, começou a escutar as dicas nas suas costas:
– Senhor Tenente, mande apresentar armas… Senhor Tenente, mande apresentar armas...
Numa meia rotação esclareceu:
– Temos de esperar pelas Altas individualidades, não? Hão-de estar a chegar, ou nos adiantámos ou atrasaram-se...
Nas suas costas soltaram-se risotas abafadas. Pensou “ó diabo!...” Os risos cresceram, a insistência no “mande apresentar armas” também. Reparou então que o Sargento da Banda esticava o pescoço lá do fundo, à frente e à sua direita, intrigado, numa tentativa, achava o Marinheiro E, de tentar perceber o que é que se estava a passar, porque é que não se tocava o Hino. E lá ao fundo, à esquerda, também a Guarda a ser rendida dava mostras de inquietação. Foi então que um dos seus sargentos, um passo em frente, ciciou:
– Senhor Tenente, não há Altas Individualidades nenhumas. Nunca há, nunca houve. Deve de mandar «Apresentar Armas» para dar seguimento à Rendição. É assim...
E assim se fez para descanso de todos, da Banda, que tocou o Hino, e das Guardas que se renderam ao som da Marcha Militar, que só não foi a Nupcial porque não se tratava de casamento nenhum...Concluída a cerimónia, seguiu a Banda, como é costume dizer-se, caminho de regresso ao Forte ao som da mesma Marcha Militar e da população ululando à cadência do cortejo. Já no transporte para o INAB, aliviada a tensão, o pessoal, divertido, entre risos, sempre respeitosos, atirava “Hein, Senhor Tenente, então queria cumprimentar as Altas Individualidades?!... Queria era abrir a porta do carrão e apertar a mão ao Senhor Governador!... Essa gente tem mais que fazer!”...
O Marinheiro E, sorriso concupiscente, apenas dizia e era para si próprio “sim, sim, o Aires bem me ia lixando com a da saudação às Altas Individualidades ausentes”...
Marinheiro E*
*O Marinheiro “E”, de todos já conhecido, é o 2TEN FZ RN Elisio Carmona Oficial, que integrou os efectivos da CF 11 e que cumpriu uma comissão de serviço na Guiné nos anos 1971/1972.
Fontes:
Texto e fotos já publicados na Revista "O Desembarque" n.º 28 da Associação de Fuzileiros, Novembro 2017, autoria de Mar E, Sócio Originário n.º 1542, AFZ, Oficial RN da CF11, Guiné 1971/1972;
Texto e fotos já publicados na Revista "O Desembarque" n.º 28 da Associação de Fuzileiros, Novembro 2017, autoria de Mar E, Sócio Originário n.º 1542, AFZ, Oficial RN da CF11, Guiné 1971/1972;
mls
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