16 dezembro 2016

A Epopeia da LDM 302 na Guiné (1)


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 28 de Novembro de 2008)

19 de Dezembro de 1967 – O ataque e afundamento da lancha




A LDM «302» antes de seguir para a Guiné a bordo de um navio mercante


A «LDM 302», de que apenas o casco veio dos EUA em 1963, foi adaptada nos estaleiros da Argibay, onde permaneceu para esse efeito de 9 de Outubro desse ano a fins de Janeiro do ano seguinte.

Foi aumentada ao efectivo das navios da Armada em 18 de Janeiro de 1964.

Chegou à Guiné, Bissau, a bordo de um navio da Marinha Mercante, na manhã de 23 de Fevereiro desse ano. Era seu patrão de então o marinheiro de manobra n.º 2156, Aristides Lopes.

Após um curto período de adestramento da guarnição, foi atribuída ao DFE 2 - Destacamento de Fuzileiros Especiais n.º 2, ao qual competia a fiscalização da zona do rio Geba tendo aí iniciado intensa vida operacional.

Efectuou um primeiro cruzeiro de fiscalização naquele rio, em 18 de Março, sem que nada de anormal tivesse ocorrido, o que poderia ser interpretado como bom augúrio naquele teatro de guerra.

De 9 a 11 de Abril, pela primeira vez, em conjunto com a LDM «101», LDM «201«, LFG «Escorpião», LFP «Canopus» e os DFE 8 e DFE 9, foi incluída numa missão de apoio de fogo e transporte de fuzileiros, a operação «Tenaz», levada a cabo no rio Cumbijã.

Em 22 de Abril o baptismo de fogo. Frente a Jabadá quando, em conjunto com mais três LDM procedia a um desembarque de fuzileiros, o inimigo tentou opor-se com fogo de armas ligeiras mas não conseguiu evitar o desembarque.

No dia 22 de Julho, foi atacada pela segunda vez, desta feita no rio Cacheu, em Porto de Côco. O inimigo, emboscado nas margens, utilizou metralhadoras pesadas e morteiro, sem consequências.

Durante o resto do ano de 1964 tomou parte em várias operações no rio Geba e recolheu ao SAO – Serviço de Assistência Oficinal, onde foi submetida a alterações no poço, procedendo-se à instalação de uma cozinha e alojamentos para a guarnição. Foram também protegidos com chapa balística a casa do leme e o escudo da peça Oerlinkon de 20 mm.

A partir de então ficou com possibilidades de alojar permanentemente a guarnição, como viria a revelar-se indispensável.

1965, veio a revelar-se para a LDM «302» um ano muito duro. Continuando a desempenhar denodadamente missões de fiscalização, escoltas a combóios de barcaças mercantes, transporte de tropas e apoio de fogo, no dia 4 de Fevereiro, em frente de Tambato Mandinga, no rio Cacheu, foi violentamente atacada das margens com morteiros e metralhadoras ligeiras, sofrendo 30 impactos no costado e superestruturas. Não houve baixas na guarnição para o que muito contribuiu, certamente, a sua pronta e valorosa reacção.




A LDM «302» navegando no Cacheu, junto ao tarrafo da margem
A – Poço(resguardado com chapa balística); B – Peça Oerlinkon; C – Tarrafo; D – Casa do leme;
E – Bote de borracha; F – Porta de abater; G – WC.


No dia 4 de Outubro, no rio Armada, um afluente do Cacheu, em missão de transporte de forças terrestres, foi atacada das margens com metralhadoras ligeiras e granadas de mão, resultando 10 feridos ligeiros entre os militares embarcados.

Novamente, em 28 de Outubro, a leste de Farim, na margem do Cacheu, durante uma operação de desembarque de fuzileiros foi alvejada, sem consequências, com tiros de espingarda.

Foi de relativa tranquilidade o ano de 1966 dado que, apesar de ter estado sempre no rio Cacheu no cumprimento das missões que lhe foram atribuídas, não teve qualquer contacto de fogo directo. Mercê do seu constante vaivém nos rios da zona, tornara-se já perfil conhecido e respeitada pelo inimigo.

Trágico viria a revelar-se o ano de 1967, ainda que pelo escoar do tempo se assemelhasse ao anterior, aparentemente tranquilo. Chegara-se a meados de Dezembro sem qualquer acção hostil e apenas no dia 16, em violenta acção do inimigo contra Binta, auxiliou com eficácia as forças terrestres na defesa daquele aquartelamento.

Não viriam aqueles seis homens de guarnição a terminar assim o ano quando, a 19 de Dezembro, pelas 11:00, a LDM “302” descia o rio Cacheu, em postos de combate, calor já a apertar, margens de tarrafo denso a entranhar-se pelo rio.

No leme, o patrão, marinheiro de manobra Domingos Lopes Medeiros; nos seus postos, junto à Oerlinkon, os marinheiros artilheiros Manuel Luís Lourenço e Silva e Manuel Santana Carvalho; no posto de fonia, o marinheiro telegrafista Joaquim Claudino da Silva; na MG 42 o marinheiro fogueiro Manuel Fernando Seabra Nogueira e junto aos artilheiros, pronto a acorrer onde necessário fosse, o marinheiro fogueiro Ludgero Henriques de Oliveira, de serviço aos motores, comandados da casa do leme.

A lancha deixara para trás uma das muitas curvas sinuosas do rio e passava frente à clareira do Tancroal, com a guarnição em redobrada atenção pelo comprovado perigo que representava, pelo historial anterior de ataques já desferidos contra diversas unidades navais.

Subitamente, observaram-se fumos na margem sul à boca de peças e, quase de seguida, fortes rebentamentos. O navio estremeceu violentamente e os motores pararam. Estavam sob violentíssimo ataque de canhão sem recuo, lança-granadas foguetes (RPG) e ainda metralhadoras, pesadas e ligeiras.




Em cima, no rio Cacheu, assinalado o Tancroal, local de ataque à LDM «302»

A lancha atingida e com o patrão gravemente ferido ficou sem leme, entrando pelo tarrafo da margem Norte. Os ramos vergaram de imediato e, de seguida, ao recuperarem a posição normal, projectaram a LDM «302» que recuou, ficando à deriva.

A lancha metia água e afundava-se rapidamente de popa. A inclinação era já muito grande e os artilheiros, com água pelo peito, ainda faziam fogo por cima do tecto da casa do leme com grande dificuldade. O posto de fonia, atingido por um estilhaço de granada, tinha ficado destruído e o patrão moribundo, jazia caído sem que alguém lhe pudesse sequer acudir no momento.

Sentido, de todo, que o navio estava perdido, os artilheiros viram-se forçados a abandonar a peça tentando então o telegrafista, socorrer o patrão. Fez um esforço para o por de pé mas foi-lhe de todo impossível. Atingido em cheio estava quase cortado em dois, pelas costas, com as vísceras de fora.

Inexplicavelmente, o inimigo deixou de fazer fogo. O telegrafista, o mais antigo depois do patrão, assumiu o comando e deu ordem para abandonar a lancha. Arriaram então o bote de borracha, colocaram lá dentro, o patrão, nessa altura já morto, os papéis de bordo e uma G3, dirigiram-se para a margem e esconderam-se no tarrafo. Fora de água, a lancha tinha apenas parte da porta de abater.

Era imperioso alguém ir a Bigene, o aquartelamento do Exército mais próximo, situado a cerca de três quilómetros e regressar com socorros. Sendo os restantes elementos novos na guarnição e o telegrafista o único conhecedor da zona, empunhou a arma e foi ele próprio, conseguindo lá chegar coberto de lama e sem precalços pelo caminho.

Entretanto, a LDM «304», que navegava não longe do local, alertada pelo ruído das explosões e tiros da LDM «302», dirigiu-se ao local deparando, para espanto da guarnição, com uma lancha totalmente afundada, sem ninguém à vista.

Passaram-lhe um cabo de reboque e seguiram rio abaixo, avistando pouco depois os sobreviventes que embarcaram e relataram o sucedido.

Mas nesse dia a má sorte acompanhava a LDM «302». Ao aportarem a Ganturé, local escolhido para encalhar a lancha, em águas poucos profundas para poder ser recuperada, o artilheiro Carvalho, que saltara do bote para a LDM «302» a fim de manobrar os cabos de reboque, caiu à água e nunca mais foi visto, não obstante os porfiados esforços dos seus camaradas, soldados e nativos de terra que tinham acorrido ao local.

Tudo tinha sido muito rápido, com consequências trágicas em escassos vinte minutos de duração, num combate desigual para a guarnição, que enfrentou o inimigo com perda de vidas mas com exemplar determinação, abnegação e estoicismo.

Foram agraciados com a Cruz de Guerra na cerimónia anual do 10 de Junho, no Terreiro do Paço, estando os já ausentes representados pelas suas famílias.

A LDM «302» seria rapidamente recuperada e voltaria a navegar!


(continua)



Das Unidades presentes:

• LFG «Escorpião» tinha como oficiais: 1TEN José Olias Maldonado (Comandante) e 2TEN RN Fernando Tavares Farinha (Imediato);
• LFP «Canopus» tinha como oficial: 2TEN RN Luis Pinto Fernandes Sequeira (Comandante);
• DFE 2 tinha como oficiais: 1TEN Mário Augusto Faria de Carvalho (Comandante) que tinha substituído o 1TEN Pedro Manuel de Vasconcelos Caeiro, ferido em combate; 2TEN Adolfo Esteves Sousa (imediato), 2TEN FZ SE António Carlos Samões e 2TEN FZE RN José Luis Couceiro;
• DFE 8 tinha como oficiais: 1TEN Guilherme Almor Alpoim Calvão (Comandante), 2TEN José Manuel Malhão Pereira (Imediato) e 2TEN FZE RN José Luis Couceiro (3.º Oficial); este último tinha substituído o 2TEN FZE RN Abel Fernando Machado de Oliveira, ferido em combate;
• DFE 9 tinha como oficiais: 1TEN Horácio Gata Metelo de Nápoles (Comandante), 2TEN Francisco Isidoro Montes de Oliveira Monteiro (Imediato) e 2TEN FZE RN Emídio da Silva Simões (3.º Oficial);


Fontes:
Arquivo de Marinha, Revista da Armada n.º 129 de Julho 1982, Setenta e Cinco Anos no Mar da Comissão Cultural da Marinha - Volumes diversos; Anuário da Reserva Naval, 1958-1975, Adelino Rodrigues da Costa e Manuel Pinto Machado, 1992; Fuzileiros-Factos e Feitos na Guerra de África, 1961-1974, Crónica dos Feitos da Guiné, Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006;


mls

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