11 setembro 2019

Moçambique, DFE4 - A captura de Fernando Assane

DFE 4 - Moçambique, 1967/1969

cultura&memória


Preâmbulo

O DFE4, sob o comando do signatário desta crónica, cumpriu uma Comissão de Serviço em Moçambique entre Novembro de 1967 e Dezembro de 1969.

Realizou 70 operações correspondentes a cerca de 300 dias no mato, percorrendo perto de 3.500 km (valor estimado) além das deslocações em viaturas, aviões, helicópteros, combóio, meios navais, etc.

Nesta narrativa vou recordar factos ocorridos na 8.ª Operação, baptizada com a designação de “Chave de Ouro II”, por julgar causar boa disposição a quem a quiser ler.

Por natureza, formação e para minha defesa pessoal, só recordo acontecimentos que deram satisfação e boa disposição. Apesar dos enormes esforços físicos que nos foram exigidos nunca senti que qualquer dos homens que serviram comigo manifestasse sintomas de “stress” ou outros sentimentos deprimentes. Toda a nossa actividade se desenvolvia com entusiasmo, aventureirismo e satisfação pelo dever cumprido.

O Lago Niassa, um dos maiores reservatórios de água doce do mundo, estava sob jurisdição do CDPLN - Comando da Defesa dos Portos do Lago Niassa. Considerava-se haver 3 portos com cais acostáveis: Metangula, Cobué e Meponda.

O Lago era patrulhado por lanchas, de fiscalização e de desembarque. Todos os meios navais foram transportados a partir do Oceano Índico, utilizando a linha de caminho-de-ferro e viaturas de grandes dimensões, numa epopeia que causa a maior perplexidade a quem tem curiosidade de saber como tudo se passou.


Pressupostos

Em Janeiro de 1968 dois comandantes de lanchas, em dias diferentes, comunicaram ao CDPLN terem sido flagelados com tiros de armas ligeiras, a partir duma vasta zona conhecida por Meluluca, tendo ripostado com peças de 20 mm. O controlo desta área era da responsabilidade do DFE4.

Consequentemente, o Estado-Maior do CDPLN gizou uma Ordem de Operações determinando que o DFE4 patrulhasse a referida zona para se inteirar das alterações havidas, já que era suposto estar limpa da presença de guerrilheiros.


Operação Chave de Ouro II

Iniciou-se no dia 14 de Janeiro de 1968. Saída de Metangula pelas 20:00. Dois grupos de combate, num total de cerca de 40 homens, cada um comandado pelo Comandante e Imediato, embarcados em duas lanchas de fiscalização, com todos os meios necessários e suficientes para que a operação decorresse com toda a segurança.

Navegando em total ocultação de luzes, já perto do local de desembarque, previamente determinado, cerca das 22:00, surgiu uma tempestade medonha, com ventos muito fortes, chuva grossa e intensa, raios e trovões. O desembarque, na foz do rio Lussefa, realizou-se debaixo deste temporal. Os primeiros homens, de joelhos e com as mãos abriam trilhos na areia para detectarem a presença de minas antipessoais. O distrito do Niassa era cognominado de “estado de minas gerais”!...

Já em terra, ficámos de pé, encostados às árvores existentes, procurando descansar. O solo estava com mais de 20 cm de água! Por outro lado seria muito arriscado movimentarmo-nos sem vermos nada. Os relâmpagos cegavam-nos. O temporal foi amainando e os primeiros alvores surgiram cerca das 05:00, já com o céu limpo. Imediatamente, iniciámos a deslocação em coluna de “pirilau” (fila indiana) com o grupo do Imediato à frente. Percorridos cerca de 800 metros o Comandante foi chamado à frente pois foram avistadas pegadas fresquíssimas, completas e muito bem definidas, em terra cultivada, o que indiciava terem andado por ali dois homens já depois das chuvas.

Os rastos, em passos normais, eram o testemunho de que não se tinham apercebido da nossa presença. As pegadas inflectiam para um trilho bastante batido, pelo que o grupo do Imediato se dispôs-se T, com duas MG42 nos extremos e um LGF a meio, junto a si. Enquanto o grupo do Imediato se preparava para o combate, o grupo do Comandante, sempre em linha, trepou um monte à direita por forma a flanquear uma possível base inimiga ali sediada haveria poucos dias.

Andados cerca de 200 metros, o grupo do Comandante via perfeitamente o aglomerado de palhotas novas. Houve que esperar que o grupo do Imediato se aproximasse até cerca de 30 a 40 metros. Naquela progressão foi avistado um posto de vigilância, em cima de uma árvore, desguarnecido. Em terra, o hipotético vigia “aliviava a tripa”!!! Em vez de limpar o traseiro levou a mão à espingarda, que tinha ao seu lado. Azar o seu. Gerou-se um tiroteio violentíssimo que durou aproximadamente 4 a 5 minutos. Uma eternidade para quem estava a ver o desenrolar do combate. E ao mesmo tempo, ia fazendo uns tiros certeiros. Tipo tiro ao alvo.

O acampamento era formado por 25 a 30 palhotas, estrategicamente camufladas debaixo das árvores. Após o combate, foi montada a segurança, contados os mortos, passada revista às palhotas, recolhidos armas e documentos, sendo o acampamento destruído pelo fogo. Não ficaram feridos no terreno. Presumimos que os sobreviventes os tenham levado.


A Captura

Terminada a rotina da apreensão dos materiais encontrados foi o Comandante alertado para o facto de haver um rasto de sangue na periferia, indicando um ferido em fuga precipitada, a corta mato, em direcção a sul. Os sobreviventes, levando os feridos, terão fugido por um trilho muito batido em direcção a leste.

Passados 10 a 15 minutos para descanso e para comermos, seriam perto das 07:00, encetámos a perseguição ao ferido. O sangue deixado no capim ia diminuindo, até que desapareceu. O capim partido denunciava a passagem do fugitivo. Cerca das 11:30, já com o sol a pique, chegámos à beira de uma ravina, inclinada a cerca de 60°, com o talude completamente desnudado. A 120 m, em linha recta havia uma baía, à beira do lago, onde estavam implantadas 5 a 6 palhotas.

Houve que ponderar a decisão a tomar para avançarmos num terreno sem qualquer protecção. Decidimos avançar, estendidos em linha curva, tipo meia-lua, convictos de que iríamos encontrar o ferido fugido do Lussefa. Lentamente, passo a passo, íamos avançando sempre com receio de sermos “mal recebidos”! Passada a revista às palhotas - ali havia um tufo de árvores que as encobriam - concluímos terem sido abandonadas precipitadamente, sem deixarem objectos palpáveis. Havia 9 casquinhas que eram embarcações manufacturadas a partir de troncos de árvores.




Marinheiro FZE Fernandes Cruz, Fernando Assane e Marinheiro FZE Fernando Caçador


O ferido? Sem rasto!

Foi então que entrou em acção o nosso guia intérprete que sempre nos acompanhava, o Domingos Aíde. A plenos pulmões gritou, ora em dialecto "ajaua" ora em "nianja", dizendo que sabíamos estar ali e que se não se apresentasse varríamos tudo com rajadas de metralhadora e granadas. Ao mesmo tempo garantíamos que nada de mal lhe aconteceria.

Passados cerca de 10 minutos, um dos muitos montes de pedregulhos ali existentes, parecia ter ganho vida. Afastando as pedras, surgiu um homem com cerca de 25 anos, bastante corpulento e bexigoso, tremendo como varadas verdes. As suas queixadas pareciam castanholas sevilhanas!

O Domingos Aíde, muito calmamente, apresentou o Comandante daquela tropa, garantindo que ninguém lhe faria mal. Teria que colaborar respondendo com verdade às perguntas que lhe íamos fazer. Aparentemente mais calmo, identificou-se como "Fernando Assane", nascido próximo de Nova Coimbra, que viera para ali destacado havia cerca de uma semana, com o objectivo de fazer fogo contra embarcações que passassem nas proximidades da “base do Lussefa”. Ficámos a saber que tínhamos atacado e destruído a “base do Lussefa”. Informou que falava português e que fora ferido na perna esquerda durante o tiroteio. O nosso enfermeiro desinfectou o ferimento. Não era profundo.

Ordenei que fosse buscar a sua arma. Logo uns fuzos se precipitaram com receio de que fizesse uso “indevido” da dita. Impus que seria ele a ir buscar a arma e a entregá-la. Lá foi ao amontoado de pedras e trouxe uma metralhadora com dispositivo para fogo contra aeronaves, com dimensões muito avantajadas, bastante pesada e diferente das que era suposto serem utilizadas pela Frelimo. Informou que para manusear aquele “brinquedo” tinha recebido instrução na Tanzânia.




José Cardoso Moniz (Comandante do DFE 4) e Fernando Assane

De imediato houve uma forte empatia entre o guerrilheiro e os fuzileiros. Depois das manifestações de pânico e à medida que ia acalmando, começou a aceitar alimentos consigo partilhados. Como ficou dito havia 9 casquinhas. Comunicámos com o CDPLN e pedimos para sermos reembarcados. Depois daquele tiroteio, todos os possíveis habitantes fugiram para longe. Solicitámos ainda que fosse disponibilizada uma LDP para transportar as 9 casquinhas que poderiam ser aproveitadas pelos pescadores de Metangula.


Apresentação do Prisioneiro ao CDPLN

Reembarcámos, regressámos a Metangula onde todos os oficiais, sargentos e muitas praças nos esperavam. Entre todos estava Orlando Cristina. Este, logo manifestou interesse em entrevistar o Fernando Assane. A conversa foi longa, em dialecto "nianja". O Domingos Aíde ia traduzindo.

Quando o Orlando ficou satisfeito e dispensou o Fernando este, com um sorriso matreiro, perguntou-lhe: “O senhor não se lembra de mim?”!!!

O Orlando, embasbacado e atento à fisionomia do Fernando, confessou não se lembrar. O Fernando, com uma grande lata, diz-lhe:

O senhor foi casado com a minha irmã. Sou filho do régulo…” (não me recordo do nome). O Domingos Aíde nem conseguia traduzir de tanto rir.

Depois foi a risota geral.

"Vai-te lá embora, vai-te lá embora”, disse o Orlando.

O Fernando foi entregue no Posto Administrativo de Metangula onde esteve sob prisão durante menos de uma semana. Foi-nos devolvido e integrado no DFE 4 como guia, com direito a usar a G3 sempre que saía connosco.

As casquinhas constituíram o embrião duma empresa de pesca organizada pelos Comandantes Conceição e Silva e Chuquere. Contrataram pescadores, compraram as artes necessárias e foram profícuos na pesca no Lago Niassa, onde pontificava um peixe de nome "Kapango" que chegava a pesar uns 8 kg. Uma espécie de perca do Nilo.

Esta foi uma das muitas peripécias vividas na guerra que travámos em África.

Que saudades daqueles tempos!!!




José Cardoso Moniz
Sócio Originário n.º 36 da AFZ
CMG


Fontes:
Texto e fotos já publicados na Revista "O Desembarque" n.º 21 da Associação de Fuzileiros, Junho 2015, autoria de José Cardoso Moniz (CMG FZE) comandante do DFE 4, Moçambique 1967/69;




Manuel Lema Santos
1TEN RN, 8.º CEORN, 1965/1972
1966/1968 - LFG "Orion" Guiné, Oficial Imediato
1968/1970 - CNC/BNL, Ajudante de Ordens do Comandante Naval
1970/1972 - Estado-Maior da Armada, Oficial Adjunto