07 julho 2018

Reserva Naval, Guiné - Talvez por me sentir ainda puto...


(Post reformulado a partir de outro já publicado em 23 de Abril de 2011)


Resposta a Emídio Aragão Teixeira do 8.º CEORN, também o meu curso...



Rio Cacheu, Guiné - LFP «Canopus» vs LFG »Orion»




Meu Caro Aragão Teixeira,


Talvez por me sentir ainda puto, partilho muitas das tuas convicções e irreverências. De forma idêntica, respeito diferenças de filosofia marcadas por percursos de vida diferenciados. Nas nossas amarras, e cada navio tem uma ou duas, partilhamos ser «Filhos da Escola» como um indissociável elo comum.

Talvez por me sentir ainda puto, gosto de pensar que nascemos, crescemos em mundos diferentes e fomos talhados à medida de uma geração de valores sedimentados pela educação e cultura, em que nunca se confundiu educação com formação académica nem cultura com bens materiais.

Talvez por me sentir ainda puto, acho que a educação se ministrava num berço, digno ainda que modesto, preferencialmente em casa dos pais. A formação académica adquiria-se em estabelecimentos de ensino adequados, muitas vezes com sacrifícios familiares, dando sentido objectivo a uma futura vida profissional com naturais anseios e sonhos, ficado muitos deles pelo caminho e concretizando outros, estes últimos normalmente poucos.

Talvez por me sentir ainda puto, sonho que a cultura, assenta num equilibrado crescimento de formação e conhecimento, nunca alienando a educação pelo caminho, no respeito por valores, pessoas, sociedade e País onde os nossos pais envelheceram e nos deixaram um dia, então melhor preparados para enfrentar a vida.

Talvez por me sentir ainda puto penso que, de forma oposta, a ambição material, arrogante e cega, em si mesma como objectivo, ignora educação, despreza valores e julga poder adquirir cultura ou conhecimento sem esforço, a troco de favores, influências, interesses de grupo ou simples envelopes «adaptados às circunstâncias».

Talvez por me sentir ainda puto, habituei-me a respeitar e agradecer a enorme energia motivadora de gente simples de antanho que, tratando-me por «vossemecê» e trabalhando se sol a sol, beata no canto da boca, de enxada nas mãos calejadas pelo tempo, não compreendiam porque se sentiam cansados aos setenta e muitos. De quando em vez, emborcavam um copo de tinto com a bucha, para retemperar forças e o trabalho seguia. Muitos, por essa idade, lá iam ao médico sem nunca terem posto os pés numa consulta.

Talvez por me sentir ainda puto, agradeço ter recebido, a troco de nada, grandes lições de sabedoria dessa «gente grande». Cresciam em berços de palha, paredes meias com o gado e arrumavam uns trocos dentro de uma meia velha, guardada dentro de uma panela esmaltada. Lá na aldeia, em tempo de férias de estudante, nas noites de cozidela de forno, partilhavam comigo a bôla de cevada ainda quente. Ensinaram-me a fazer fisgas de uma vara de freixo e a usá-la para atirar aos pássaros ou para as mais variadas aventuras, algumas delas tropelias de garotada.

Talvez por me sentir ainda puto, sonho com arcabuzes fabricados com as varas de salgueiro e rolhas talhadas com os pequenos canivetes que usava como formão, plaina, enxó e lixadeira, num quatro em um bem aproveitado. Sonho ainda com os custilos comprados na loja do correio para armar aos pardais ou às megengras (chapim-azul). Também ali se podiam comprar mercearias ou beber um copo de tinto avulso. Ao lado, a eira do povoado onde se jogava futebol, a malha do cereal, joeirar o centeio, a medição final nos alqueires para as arcas, as podas, as enxertias, as mondas, as corridas de leiras na arranca da batata e as vindimas, rodopia tudo isto nas lembranças de tempos idos.

Talvez por me sentir ainda puto, julgava ser possível estar presente numa manifestação de estudantes universitários de forma livre e espontânea. Em 1962, assim pensei no Campo de Santana e tive de fugir da polícia de choque e, no dia 11 de Maio desse mesmo ano, alta noite, juntamente com um irmão meu, fomos detidos com mais de milhar e meio de estudantes no convívio da Cidade Universitária, «apenas» por um dia. Num momento fortuito, descobri não ser possível a cidadania de corpo inteiro.

Talvez por me sentir ainda puto, em 1965, sonhei ser possível concorrer e ingressar na Escola Naval ombreando com futuros camaradas, em condições de igualdade, sem me ser lembrado aquele pequeno estigma registado numa reunião estudantil anos antes. Ingresso sim, foi possível por mérito próprio mas, no dia da admissão, a Direcção do Curso entendeu alertar para aquele «perigoso» registo de presença acrescentando o «sábio conselho» de evitar outras incursões naquele domínio.

Talvez por me sentir ainda puto, em 1966, depois de concluído o curso da Escola Naval, sonhei poder servir o País como tantos cidadãos o fizeram e entendi escolher livre e voluntariamente África para o fazer. Ainda que a classificação do final de curso, boa, pudesse fazer antever, por direito de classificação, outro teatro para o desempenho das funções atribuídas, foi entendido «superiormente» que a Guiné era o local mais adequado para o meu perfil.

Talvez por me sentir ainda puto, julgava de todo impossível, de acordo com a legislação vigente ao tempo, que outro familiar próximo, irmão mais velho, nove meses mais tarde, viesse a ter o mesmo teatro como destino de desempenho do serviço militar, neste caso como médico, integrado num batalhão. Sonhei ainda ser possível estar presente no funeral do meu pai, falecido quinze escassos dias antes do final do meu regresso da comissão de serviço. Acordar doloroso o meu, porque nem eu nem o meu irmão fomos bem sucedidos nessa normal ambição!

Talvez por me sentir ainda puto, nunca me incomodou a ideia de operações com fuzileiros, baptismo de fogo, emboscadas, flagelações e até, integrado na guarnição, servirmos de isco para provocar o combate com o inimigo. Era normal suceder. Tensão, juventude e alguma leveza na avaliação do risco eram catalisadores importantes. Sempre me preocupou a segurança daqueles que das minhas funções e do meu comportamento dependiam.

Talvez por me sentir ainda puto, recordo aqueles dois anos plenos de inesquecíveis e ricas vivências fruto do comportamento, camaradagem e solidariedade de uma guarnição de que muito me honro ter sido Oficial Imediato. Lembro-os a todos e à LFG «Orion» com grande saudade e amizade, sobretudo aos que já não se contam entre nós.

Talvez por me sentir ainda puto, gostaria que fosse possível visitar uma daquelas unidades navais que tanto prestigiaram a Marinha nos mais de doze anos de implacável e ininterrupta guerra. Quem sabe, talvez pudessem ter sido preservadas uma LDM (escolheria a LDM 302), uma LDG (escolheria a LDG «Alfange»), uma LFP (escolheria a LFP «Bellatrix») ou uma LFG (escolheria a LFG «Lira»). Afinal foram dezenas de unidades navais e alguns milhares de homens que se bateram pelo País. Mas não, ficaram por lá todas sem excepção, cascos apodrecidos num rasto pouco de acordo com uma cultura histórica digna.

Talvez por me sentir ainda puto, gosto de recordar os heróis da Marinha que se distinguiram em acções especiais. Bastará lembrar os elementos das guarnições da LDM 302 que em três dos vários ataques sofridos (1967, 1968 e 1969), tiveram 3 mortos em combate e 1 ferido grave (todos no rio Cacheu) e um outro grave (no rio Uajá).

Talvez por me sentir ainda puto, lembro também a LFG «Lira» que, no mesmo local do rio Cacheu (Tancroal), no princípio de 1968, já noite a fechar, atacada com diverso armamento, foi atingida com 2 granadas de RPG7 que lhe provocaram 1 morto (DFE 10), 4 feridos graves e 3 ligeiros. Dos feridos ligeiros, um foi o nosso camarada 2TEN RN Calado Marques que, mesmo ferido, assumiu durante 5 horas a navegação até Vila Cacheu, complementando o comando de um navio sem comunicações, sem giro e com avarias diversas. Apenas ali foi possível a evacuação do elemento da guarnição morto em combate e dos feridos.

Talvez por me sentir ainda puto, sonho que um dia poderá vir a ser possível levar a cabo um projecto sério de País em que os nosso filhos e netos se orgulhem de viver, alicerçado numa cultura idónea de cidadania e sociedade. Nele, as Instituições responsáveis defenderão intransigentemente a preservação da identidade de um Estado democrático com maior justiça e bem estar social.

Talvez por me sentir ainda puto, continuarei determinadamente a registar, no nosso caso particular, o orgulho de termos sido o último curso «Especial» de muitos outros da Reserva Naval e, enquanto pudermos utilizar pena ou teclado, reescrever as memórias do que entendermos importante.

Talvez por me sentir ainda puto lembro que, do nosso convívio Guiné, já partiram para a última comissão dos »Magníficos» os camaradas e amigos Jorge Manuel Calado Marques (Galã), José Carlos Pereira Marques (Lotus Flower), Manuel Sousa Torres (Manecas) e ainda o José Manuel Matos Moniz. Do nosso curso, não apenas Guiné, também o José Tereno Valente, Alexandre Ferreira Borrego, António Palma Fernandes, Augusto Soares de Albergaria, António Marinho de Castro, Frederico da Luz Rebelo, José Matos Moniz, Manuel Monteiro Coutinho, Paulo Lowndes Marques e Rui Sousa Eiró já não se encontram entre nós. Certamente escolheram o rumo certo para um reencontro do nosso curso para breve, o 8.º CEORN.

Abraço amigo,



Manuel Lema Santos
8.º CEORN




Fontes:
Comentário de Manuel Lema Santos, 8.º CEORN, compilado e editado por mls; texto e fotos de arquivo do autor do blogue com cedência do Museu de Marinha e Henrique Oliveira Pires, 11.º CFORN;


mls

2 comentários:

Santos Oliveira disse...

Talvez porque ainda sou puto, não encontro outras palavras que possam Historiar com mais dignidade, mais Honra, mais sentir, o que aqui é dito.
A Glória dos Povos está na História que é (foi) feita por quem se doou até aos limites da Força Humana.
Não é necessário reescrever a História, mas reconheço ser necessário (saber) contá-la nos seus acontecimentos reais e não através de "Relatórios de conveniência" que enchem os Arquivos Oficiais.
Talvez porque ainda sou puto, eu acredito que assim será feito um dia, a título póstumo, embora se hajam perdido veros contadores de vivências reais em Episódios da Guerra.

Abraço
Santos Oliveira
Sarg.APInf/Ranger

Luís Costa Correia disse...

Belo texto.